O teatro é uma arte viva. É impossível, por mais que tentemos, transformar a arte cênica em mera reprodução. Qualquer pessoa que tenha experimentado essa paixão, seja enquanto público ou como parte atuante de um espetáculo, sabe que o teatro surge ali, em cena, e segue seu rumo carregado pelas forças das correntes de sua magia que deságua no oceano de cada um de nós numa espécie de pororoca cósmica.
Por mais que se ensaie marcações e intenções, é absolutamente impossível reproduzir em cena aquilo que deu certo na noite anterior. Chegamos, através da exaustão, a uma proximidade tremenda, no entanto, existem pequenos detalhes, tesouros preciosos e teimosos, que insistem em tirar as coisas do seu devido lugar. Muitos justificam isso dizendo que o mistério faz parte dos encantos de Dioniso, deus absoluto das ribaltas e dos bosques, e é claro que eu, um homem dos palcos, não irei duvidar das forças ocultas que rondam as coxias. Dioniso tem leis próprias, na verdade surge enquanto um “antídoto da lei” e é preciso se entregar completamente aos seus caprichos e desejos antes de dar vida a um espetáculo. Todo teatro é um ritual de adoração a esse Deus, já que uma das explicações da origem dessa arte é justamente o Ditirambo: coro em homenagem ao altíssimo bebedor adorador dos vinhos, dos excessos e da errância sexual.
Além das questões que envolvem os encantados, o teatro tem em si diversos elementos que podem, e devem, justificar essa sua faceta de se perder pelo ar e sumir numa brisa em direção ao infinito. Seria impossível, além de extremamente modorrento, ficar por aqui enumerando esses elementos, porém, quero no texto de hoje me debruçar um pouco mais sobre um deles, aquele que considero o mais importante: o ator.
O teatro é inevitavelmente a arte do ator. Evidente que temos diversos profissionais envolvidos no processo e eles são, cada um à sua maneira, imprescindíveis para o resultado final. Para que a máquina rode de maneira correta é preciso que todas as engrenagens estejam funcionando perfeitamente e que cada mecanismo esteja engraxado com o desejo desejante de seguir em frente. O acaso, esse menino atrevido, ronda cada fresta em busca de um pequeno descuido para se apoderar de toda a situação, por isso é preciso se dedicar integralmente a cada detalhe, por mais insignificante que pareça, a fim de evitar desastres e surpresas que, inevitavelmente, vão acontecer. Fora do mainstream, se bem que sabemos que em se tratando de teatro existe mais suor que glamour, o acúmulo de tarefas é algo natural. Não é nenhuma novidade vermos um diretor atuando, por exemplo, ou um ator que além de produzir assina a luz do espetáculo e ainda sobe na escada para afinar refletores. Sabemos que é preciso fazer jorrar sangue dos poros para se colocar uma peça no palco, e que mesmo diante de todo esforço a coisa pode ir por água abaixo ao soar do terceiro sinal. Por isso todos nós, remediados ou não, sofremos com a ansiedade, essa dama caprichosa que nos dá náuseas pela manhã e que nos tira o sono em toda madrugada.
Quando da estreia de um espetáculo, todos os envolvidos estão em transe. As borboletas bailam pelos estômagos. Os diretores ensaiam chiliques programados, autores se desesperam entre vírgulas e insatisfações e os atores, diante do abismo negro de um palco apagado, controlam os ânimos enquanto repassam as falas em tom de desespero. A partir do terceiro sinal, o ator tornar-se-á um cavalo, dará vida a um personagem que erguerá uma obra e, naqueles minutos eternos, poderá fazer com a peça o que bem entender. Um ator pode ser responsável pelo velório de uma obra a qual centenas de pessoas se dedicaram durante meses ou o grande herói que será coroado com as uvas de Baco ao fim do expediente. E é sobre esses pequenos segundos que precedem o caos de uma estreia que reconheço uma vida que insiste em se esconder nas vestes brutas da rotina.
Um ator pode ser responsável pelo velório de uma obra a qual centenas de pessoas se dedicaram durante meses, ou o grande herói.
Há, nos torturantes minutos que antecedem o abrir das cortinas, um canto escuro que só os atores conhecem. Uma espécie de paraíso turvo onde encontramos todos os nossos fantasmas. Ali, no breu absoluto de nossa alma, a vida faz sentido. Há um cheiro de medo e madeira que invade as nossas narinas e nos passa toda a calma do mundo e é dela que precisamos para seguir adiante. Essa escuridão sagrada não tem mapa, tampouco é possível explicar o caminho para se chegar até lá. Ela vive dentro de nós, na esperança que nos move a cada dia ao cruzar as ruas da cidade em direção aos terreiros de Dioniso. Ela transborda quando sorrimos de nervoso diante de cada branco que espreita nossos passos. Ela ilumina nossa marcha descabida através dos descaminhos que essa arte nos guarda. É ali que todo ator se desvenda. É nela que apostamos todas os nossos sonhos. É essa escuridão que nos mantém vivos.
Esse pequeno canto apagado de um palco guarda toda a beleza do mundo e é através dele que nos reconhecemos diante da vida. Eu, que tenho, assumidamente, um medo e uma revolta danada em relação à morte, espero que meu fechar de olhos eternos guarde ao menos todo o encanto daquele pequeno pedaço escuro onde, mesmo que por alguns instantes, conheci a felicidade plena. E se um dia, para decretar o início de nossa jornada de sofrimento o homem lá de cima disse “fez-se a luz”, é inevitável que a escuridão, mera ausência de luz, guarde a calma que eu precise pra sobreviver nesse mundinho alumiado por demais.