Há tempos o ser humano descobriu que o mundo ideal não existe, a menos que dê as caras nos devaneios particulares de cada um de nós: eternos desesperados. Nesse impossível mundo ideal, uma coluna de teatro não deveria tratar de violência, a não ser que essa violência fosse compreendida através da ação cênica, como propõe Antonin Artaud, por exemplo. Infelizmente, esse não é o caso.
Habitamos um mundo absurdo, doente, onde a violência nos sufoca diariamente e acaba, pouco a pouco, por cercear a nossa liberdade, os nossos sonhos e a nossa beleza. O homem vive refém de seu próprio horror: um horror que se manifesta de diversas maneiras e que, muitas vezes, dá-se através das omissas garras do Estado e de seu braço armado eficaz e truculento: a polícia.
Na última semana, a polícia militar foi responsável por duas ações que poderiam facilmente ser definidas como crime contra a liberdade de expressão. As vítimas? Todos nós! O artista e performer Maikon K foi preso arbitrariamente pela polícia militar do Distrito Federal enquanto apresentava a performance DNA de DAN, dentro do circuito Palco Giratório promovido pelo Sesc; e a Selvática Ações Artísticas teve seu material de trabalho apreendido e seu espaço invadido por conta da operação Patrulha do Sossego comandada pela polícia militar do Paraná.
Em ambos os casos, a polícia usou como justificativa apenas a autoridade concedida por um estado opressor e não justificativas legais. Por conta disso, e por saber que a liberdade precisa ser defendida com unhas e dentes, a coluna dessa semana se coloca no olho do furacão em defesa dos artistas violentados.
CASA SELVÁTICA
Na última sexta-feira, 14, a Casa Selvática foi novamente alvo da truculência policial. Passava das 21h quando a PM chegou ao local, interrompendo o show das Sextas Etruskas. O motivo? A operação Patrulha do Sossego, coordenada pela Ação Integrada de Fiscalização Urbana (Aifu), que tem fechado bares e impedido o funcionamento de espaços culturais independentes em Curitiba. Sem maiores explicações, o equipamento de som, instrumento de trabalho do grupo, foi levado e o produtor Gabriel Machado intimado a assinar um termo circunstancial na delegacia local. Tudo isso na base do grito, da truculência e da ameaça.
Apesar de sofrer pela segunda vez na pele os abusos policiais que acontecem rotineiramente no país, os artistas da Selvática não titubearam e logo se manifestaram contra o tipo de ação efetuada. Segundo nota, a ação “busca, mais do que sossego, amordaçar qualquer tipo de manifestação que possa desagradar a alguns paladares, como é o caso do espaço”. É preciso lembrar que a Selvática trata artisticamente das questões de cunho LGBTQIA na cidade de Curitiba e acredita, como nós, que as temáticas de trabalho do grupo incomodam o asqueroso “status- quo” da capital paranaense.
Em ambos os casos, a polícia usou como justificativa apenas a autoridade concedida por um estado opressor e não justificativas legais.
Em ambos os casos, a polícia usou como justificativa apenas a autoridade concedida por um estado opressor e não justificativas legais.
A ação policial na Selvática é absurda. No entanto, o grupo prova que a crença na poesia e a defesa da liberdade é sempre triunfante, já que o espaço voltou à ativa ainda com mais força e contou com a solidariedade da classe artística que saiu em sua defesa. Reiterando a fé que transforma arte em batalha, o grupo afirma que sempre acreditará “na festa, na arte e no exercício da liberdade, na criação de zonas autônomas como forma de pensar e fazer política e não iremos parar. Não acreditamos em ditaduras, fascismos e conservadorismos de qualquer espécie. Respeitamos quem assim desejar desenvolver sua vida, mas informamos que a nossa está pautada em outros temas”.
Como os Selváticos, nós também somos um verso livre e não uma rima cínica, por isso além de solidariedade prestamos continência à coragem da trupe e entoamos o coro que luta pelo direito de livre manifestação artística nessas cidades que hoje estão naufragada por ordens e proibições.
Prisão e violência em Brasília
O caso envolvendo o artista Maikon K é ainda mais absurdo, se é que existem níveis quando tratamos de abusos e violência. No dia 15 de julho, Maikon apresentaria a performance DNA de DAN em frente ao Museu Nacional na cidade de Brasília. Apresentaria, já que o espetáculo, que fazia parte do Palco Giratório, foi interrompido de maneira brusca.
A mostra do Sesc, que completa vinte anos neste 2017, cria a possibilidade de intercâmbio entre artistas e cidades, e propõe, acima de tudo, a possibilidade do novo. No entanto, o que se viu em Brasília foi a já velha e conhecida violência em defesa da moral e da ordem. Que pena, Brasil! Que tristeza, Brasília!
O trabalho de Maikon estreou em 2013 com apoio de um prêmio da Fundação Nacional de Artes. O espetáculo já foi apresentado em diversas cidades e, segundo o artista, despertou curiosidade e comentários a respeito de sua nudez, no entanto, nada parecido com o que aconteceria na capital federal. Ali, a coisa foi dura.
No meio do espetáculo, paralisado por conta de uma substância líquida e pela truculência da polícia, o artista sentiu na pele, petrificada, os efeitos da repressão. O performer foi agredido, teve seu cenário destruído e foi ofendido de diversas formas. Segundo K, “os policiais chutaram e rasgaram nossa instalação de plástico, e tentaram entrar para me arrancar a força. Um dos policiais entrou levantando a mão na intenção de me dar um soco”.
O imbróglio teve início por conta do corpo nu do artista, acusado de ato obsceno e proibido de levar o espetáculo a diante. Além de ridícula, a justificativa demonstra o modus operandi de uma justiça parcial e preconceituosa, pra não dizer complexada. O corpo, caminho livre de possibilidades e lindo por natureza, transformado em crime.
Acredito que “a única obscenidade conhecida é a violência”. Diante da covardia e da estupidez, um corpo nu é uma forma de resistência. A obscenidade que combatemos é a da ausência de direitos e não a da ausência de roupas, afinal, Oswald de Andrade já nos ensinou que o azar maior da nação foi um dia nublado e não esse pudor inventado por uma sociedade temerosa de seus próprios encantos. Todo corpo é lindo, horroroso é o senhor que sempre diz não.
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Como coluna dedicada ao teatro ,não poderíamos deixar passar em branco esses acontecimentos. O avanço do pensamento conservador, geralmente escorado em atos violentos, é um fato no Brasil atual. Caminhamos em direção à barbárie. Grupos se organizam e parecem erguer tochas de fogo, é como retornar à Idade Média, quando caçavam os que pensavam diferente, quando espancavam os que acreditavam em uma outra existência e assassinavam, de diversas formas, aqueles de quem discordavam.
Geralmente, quando a violência e o fascismo encardem o mundo e poluem o ar com seu cheiro de enxofre, todos acabam contagiados. Pode ser que, à primeira vista, a reação mais natural seja a da própria violência: atacar antes de ser atacado. Não é. Apesar de tudo, ainda é preciso acreditar no afeto e no sonho, como fizeram Maikon K e a turma Selvática. Diante das armas, ainda é preciso acreditar nas artes. E é por conta disso que manifestamos apoio aos artistas envolvidos nos casos descritos.
Sabemos que a liberdade é o bem mais preciosos de uma nação, e que defendê-la é uma ação conjunta, por isso é preciso encontrar o outro nessa hora e não afastá-lo. Oswald de Andrade declarou que o papel impresso é mais forte do que as metralhadoras, sabemos disso. Acreditamos que palavras podem construir um mundo melhor, e que se todos gritarmos, a plenos pulmões, poderemos calar a matraca incessante do horror. Continuaremos firmes até o fim, na defesa daquele antigo slogan que ainda nos soa completamente moderno e urgente: “toda licença em arte”.