O crítico de arte Antonio Gonçalves Filho, em um texto publicado na Folha de S. Paulo, no dia 1.º de janeiro de 1993, intitulado “Pintor faz ritual para mortos do Carandiru”, em que discorre sobre um trabalho de Nuno Ramos, diz:
“Com o pudor de uma senhora elegante que não pode manchar seu vestido com sangue de natimortos sociais, contemporâneos têm evitado a contaminação da chamada arte sociológica.”
O trabalho em questão é uma espécie de “homenagem” que o artista fez aos mortos do Carandiru, “um ritual digno, solene e pouco típico da arte contemporânea brasileira”, nas palavras de Gonçalves Filho. Nuno Ramos, nesse período, desenvolveu trabalhos, principalmente instalações, que “propicia[ra]m uma experiência plausível do real”, apresentando um “realismo de base” – quem diz isso é outro crítico, o Rodrigo Naves.
Ao aproximar-se de uma temática – ou, melhor, de um episódio da história recente do Brasil – que mobilizou e ainda mobiliza diversos agentes das mais distintas esferas, especialmente a social-político-econômico, o artista cria um espaço de atuação em que sua voz se torna voz dissidente, quando em comparação a outros trabalhos. Isso se deve, especialmente, pelo fato de ser possível, no contexto da arte contemporânea (é importante ressaltar a diferença existente entre a produção “contemporânea” e a produção “atual”, ainda que sejam feitas no mesmo momento e a nomenclatura “contemporânea” abarque as duas. A arte contemporânea possui especificidades que nem sempre são compartilhadas com outras produções), identificar uma acentuada preocupação com a própria arte – na concepção de alguns estudiosos, como Anne Cauquelin, por exemplo, seria esse um dos principais motivos de um suposto afastamento em relação ao público, e, portanto, às temáticas “sociológicas”.
O meu interesse em ilustrar esse acontecimento e o registro crítico que o sucedeu, é relacioná-lo, de algum modo, com Terrário – dança privê num portal interdimensional, de Maikon K – um trabalho em que a profundidade de uma pesquisa corporal/material está fundida a uma certa “sociologia” que só não “mancha o vestido” porque o corpo está nu e é ele quem sangra.
A última vez que escrevi sobre o trabalho de Maikon K., sobre Corpo Ancestral (leia aqui), eu o fiz em uma perspectiva antropológica, me referindo a assuntos tais como a ancestralidade – ainda me parece muito producente pensar aquilo que o artista apresenta estabelecendo formas de ver que passem por uma leitura antropológica, porque as imagens que ele cria parecem, de algum modo, sempre fundar um universo com uma cosmologia desconhecida que vai sendo desvendada a medida que se verticaliza. Parece haver sempre movimentos que não são somente de inversão das temáticas, tais como o gênero, mas a realização de trajetos que resultam na recriação da realidade com a proposição de novos fluxos. Está em Terrário, mais uma vez, esse caráter inventivo, que faz com que tudo pareça incrivelmente “novo” e “desconhecido”, por assim dizer.
Em resposta a precariedade, o artista instaura um espaço em que a profusão de sua imagem atinge a radicalidade – de quantas formas é possível ver o corpo do artista, absolutamente desnudo, em completa exposição?
É com uma vertente que se aproxima a minha introdução, no entanto, que eu gostaria de evocar o último trabalho de Maikon K, que articula e denuncia os modos de produção da arte, juntamente com a abertura de outras formas de ser/ver, intimamente atreladas à pesquisa corporal e as materialidade que compõem esse ambiente de experimentação.
É necessário que o artista se explique. É necessário que o artista agradeça à “empresa patrocinadora” e às instituições estatais. É necessário que fique claro onde está o dinheiro – é necessário que fique claro que isso tudo é sobre dinheiro. O que faz Maikon K. é revelar o absurdo existente no modo de se conceber a arte, em um sistema em que os modos de operação se restringem a institucionalidades que precisam ser atestadas, antes de tudo, quantitativamente.
É esse o caráter “sociológico” que aqui se faz presente – a denúncia de um contexto artístico em que, resumida e simploriamente, o dinheiro impera. O artista se refere a um quadro que, mesmo hipotético, é capaz de retratar fielmente o cenário artístico local. Cabe na declaração a crítica aos editais, a saga de captação de recursos, a dependência constrangedora dos artistas em relação às instituições públicas e privadas.
Em resposta à precariedade, o artista instaura um espaço em que a profusão de sua imagem atinge a radicalidade – de quantas formas é possível ver o corpo, absolutamente desnudo do artista em completa exposição? Os olhos do público encaixados nas frestas de uma grande caixa preta: no interior, o artista experimenta-se em contato com a areia e o objeto cortante que é o espelho. Os espelhos criam um horizonte que é feito de corpo e vai até onde alcança a vista. Ali está a intimidade, objeto do voyeurismo: tão perto e, por isso, tão distante. É impossível o toque. Ainda assim, o convite: “goze comigo” – as câmeras, em breve, serão ligadas.