No dia do Halloween, os colaboradores da Livraria Cultura, no Shopping Curitiba, estavam caracterizados de figuras que fazem parte do universo do horror: os clientes eram atendidos por vampiros, bruxas e personagens de filmes dos gêneros de terror e afins. Uma senhora pedia informações sobre um livro infanto-juvenil a um jovem zumbi, que usava uma tiara que lhe permitia ter uma faca atravessando a cabeça, enquanto, perto dali, um vampiro sugeria a leitura de um poeta francês a um grupo de meninos. A decoração de todo o espaço indicava que o estabelecimento estava completamente imerso na data. Nenhum dos presentes aparentava desconforto ou desinformação. O reconhecimento de todos os elementos que foram mobilizados era geral e parecia atestar a ideia de pertencimento compartilhada – nenhuma das partes é “alheia”, ao que se podia constatar.
Nesse mesmo espaço fica o teatro Eva Herz. No último fim de semana, terminavam as temporadas de duas peças da Mataveri Produções Culturais e Cia Pé no Palco: O Negrinho do Pastoreio e Ensaio para um Adeus Inesperado (sobre essa montagem, leia aqui).
A peça infantil em cartaz, O Negrinho do Pastoreio, apresentada durante a tarde, às 16h, parecia gerar um interessante contraste no território em questão – se do lado de fora, o referencial norte-americano tão bem assimilado imperava, dentro do teatro, o folclore brasileiro se fazia presente e indicava que as distâncias e o desconhecimento nem sempre seguem lógicas facilmente compreensíveis, “o mais próximo não está mais perto” – esse quadro abre espaço para se pensar e discutir a cultura popular, a hegemonia de determinadas manifestações massivas, as noções de folclore, de “estrangeirismo”, de pertencimento e de imperialismo.
A apresentação do livro Lendas do Sul, de J. Simões Lopes Neto, autor da qual é feita a adaptação da dramaturgia da peça, é de Carlos Reverbel, intitulada “Reconhecimento Tardio”. Esse é um texto em que são articulados assuntos sobre a publicação em si, em que estão registradas lendas e histórias do Rio Grande do Sul – sendo uma delas o Negrinho do Pastoreio – assim como temáticas que envolvem a escritura de um universo da cultura popular, oral, cuja estabilidade torna-se difícil por se tratar de uma narrativa que sofre constantes e frequentes modificações, dado seu caráter falado. A produção de Lopes Neto, data as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX – o autor faleceu em 1916 e a maior parte de seus livros foi editada postumamente.
A importância dessa publicação, segundo Reverbel, é por concentrar um “nível de estilização” e um pioneirismo no trato com o folclore sul-rio-grandense. Sobre a lenda d’ O Negrinho do Pastoreio, especialmente, ele diz: “A lenda vivia anonimamente na voz do povo até começar a ser recolhida e publicada por pessoas letradas, mas somente assumiria feição de legítima obra de arte na estilização que lhe seria dada por J. Simões Lopes Neto. E foi em razão desse toque de criatividade que o mais genuíno e expressivo mito rio-grandense tornou-se conhecido em todo o país, ganhando popularidade a ponto de hoje ser cultuado em inúmeras casas de Umbanda”.
A peça apresentada não só narra a história d’ O Negrinho do Pastoreio como também enfatiza e lança luz à irresponsabilidade que há no tratamento com as questões étnicas, especialmente as que envolvem as culturas afro-brasileiras.
De fato, a saga de um jovem, negro, escravo nos pampas é considerada uma lenda a favor da libertação negra e da cultura afro-brasileira. É também uma narrativa que apresenta referenciais católicos e de origens múltiplas: tem resquícios do primeiro povoamento colonizador do solo gaúcho, que é espanhol, referenciais indígenas da tradição “guaranítica”, tem as presenças de populações vindas de outras regiões do país e, de forma bastante intensa e expressiva, da cultura negra escravocrata. É uma lenda, “genuinamente gaúcha”, que data o fim do século XIX, e apresenta a reunião de vários elementos de manifestações e culturas absolutamente renegadas.
O reconhecimento tardio, apresentado na publicação, parece ecoar de diferentes maneiras e estabelece curiosas relações com a peça, dirigida por Jean Carlos Sanchez.

A impressão é de sempre ser sobre um atraso que se fundamentam as nossas relações de identidade e de cultura popular. O trato com questões tão fundamentais e tão essenciais, como o racismo, evidencia a patética e séria estagnação da qual nosso país sofre. E aí reside a importância de montagens e produções que se empenham em revelar os nossos “reconhecimentos tardios” (isso, quando há reconhecimento). A peça apresentada não só narra a história d’ O Negrinho do Pastoreio como também enfatiza e lança luz à irresponsabilidade que há no tratamento com as questões étnicas, especialmente as que envolvem as culturas afro-brasileiras – é de uma necessidade de reescritura da(s) história(s) que se trata isso tudo. Ainda hoje, nós continuamos a matar jovens negros no Brasil (leia aqui e aqui) e tratar da cultura afro-brasileira, da qual todos nós somos frutos, de maneira criminosa e desonesta (leia aqui e aqui).
Ao centralizar essas questões em um menino, cuja ingenuidade e espontaneidade se assemelham ao do público, a montagem parece enaltecer o absurdo existente ao se fazer distinções e julgamentos envolvendo a cor de pele, por exemplo, e mais absurdo ainda é viver em uma sociedade que constantemente revela a permanência de comportamentos e pensamentos inadmissíveis. A morte do Negrinho do Pastoreio faz lembrar os linchamentos e as chacinas. É sobre constrangimento e é sobre urgência. É sobre a obrigação imprescindível de se apresentar referenciais reais, próximos e que possibilitem movimento e mudança.
Afinal, aqui, nessa terra, zumbi é Zumbi dos Palmares.