Aos olhos daqueles que passam, Campinas é dessas belas moças que, apesar de parecerem mais interessantes do que realmente são, enfeitiçam-nos com um sorriso de desprezo que guarda todos os mistérios do mundo. Nas madrugadas frias, cada paralelepípedo dessa terra sussurra uma trágica história de amor no ouvido do tempo. Guardamos, basta ter olhos de ver e ouvidos de ouvir, algo mágico nessa terra de barões ressuscitados. Mas nem tudo são flores nessas Campinas verdejantes.
Como em toda cidade, exaltamos nossas belezas e tentamos, sem sucesso, varrer para dentro do tapete tudo aquilo com o que não sabemos, ou não queremos, lidar. Orgulhamo-nos de nossos conterrâneos ilustres, no entanto, esquecemos de contar que aprendemos a amá-los e admirá-los por conveniência e não por paixão. Gritamos a plenos pulmões palavras de ordem quando não conseguimos nem mesmo organizar nosso próprio pensamento. Somos, como todo cidadão moderno, filhos imperfeitos de uma cidade que desaprendeu a nos amar.
Dentre os defeitos que assolam a beleza dessa musa estonteante está a relação de amor e ódio que ela trava com seus artistas. Esses pobres diabos, nos quais me incluo, vivem amordaçados entre o fantasma de Carlos Gomes e o descaso absoluto de todo o resto da província. Agonizam em praça pública, resistindo diante de tudo e todos com a fúria no fundo dos olhos e a paixão inundando a alma. Sim, todo artista campineiro é, antes de tudo, um apaixonado. Explico-me: é a paixão quem nos assalta a razão em uma madrugada qualquer deixando-nos à deriva em nosso próprio peito. São seus olhos misteriosos que nos guiam pelos precipícios da insegurança a cada cruzada de olhar. Seus lábios são, decididamente, a razão de toda uma existência.
“Entre as apresentações, quase todas imperdíveis, é preciso destacar a excelente peça Eldorado, que conta com direção de Marcelo Lazzaratto.”
É preciso estar sempre apaixonado! O artista que não se deixa mergulhar no abismo dessa musa absoluta acaba com os pés cravados no chão modorrento da razão, especialmente numa cidade como a nossa. Pois bem, os ventos da Primavera trouxeram muito mais que um calor inesperado para as bandas de cá. A estação dos amantes nos trouxe o florescer da possibilidade, presenteando a todos os apaixonados pelas artes com dois eventos da máxima grandeza: o Festival do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (FEIA) e a Bienal Sesc de Dança.
O FEIA é um dos eventos de difusão das artes de maior relevância no anuário cultural da cidade de Campinas. O festival, que está na sua décima sexta edição, começou no dia 19 de Setembro e segue com programação até o dia 27. A diversidade de atividades é impressionante: palestras, oficinas, exibições de filmes, apresentações de dança, teatro e música; além de duas festas que abrem e encerram o evento.
Entre as apresentações, quase todas imperdíveis, é preciso destacar a excelente peça Eldorado, que conta com direção de Marcelo Lazzaratto e atuação de Eduardo Okamoto, dois nomes de peso da Universidade. Se por um lado, a realização de um festival desse porte movimenta e reinventa a cidade, fica a sensação de uma espécie de “segregação artística”, já que, dos quatorze locais escolhidos para abrigar as atrações, onze deles estão situados no distrito de Barão Geraldo. É natural, dirão muitos, já que a Unicamp fica em Barão. Apesar de compreender, acredito que é preciso romper com quaisquer guetos artísticos a fim de ocupar, definitivamente, as ruas de todo o mundo.
Para completar o já movimentado início da primavera campineira, o Sesc São Paulo realiza na cidade a nona edição da Bienal Sesc de Dança, que acontece de 17 a 27 de Setembro. De acordo com o site do evento “as atividades selecionadas mostram o universo da Dança em seus diversos tons e matizes, com trabalhos que misturam movimentos, reflexões, provocações e pensamentos”.
Aqueles que, como eu, não carregam em si muita intimidade com essa arte, podem se maravilhar com espetáculos consagrados em todo mundo. Com um preço acessível e uma programação impecável, a Bienal tomou conta de diversos espaços da cidade, trazendo ritmo e ousadia a essa menina que anda tão comportada ultimamente. Confesso que, pela primeira vez, fui completamente tomado pela dança e assisti alguns espetáculos – entre eles destaco o Tragédia – que me marcaram tanto quanto peças que guardo cuidadosamente na memória.
Flores brotam em fecundas cores por essas terras. É preciso que aqueles homens e mulheres frios, acinzentados pelos horários a serem cumpridos e descoloridos pela rotina aproveitem o raiar dessa luz que surge diante de nossos olhos. Que a primavera artística campineira tenha, no mínimo, a função de nos modificar e, quem sabe, nos livrar do daltonismo dessa rotina em branco e preto.