Trocando Em Miúdos: Nos dois últimos dias de fevereiro a Rua São Francisco, no centro de Curitiba, foi tomada por Gilda Convida Maria Bueno. A cidade, a arte, a violência, a mulher e a marginalidade entendidas não somente enquanto temas, mas como exercício.
Nicolas Bourriaud, quando discorre sobre a estética relacional e as articulações da arte com a cidade, insere as manifestações artísticas em um ambiente de elaboração coletiva do sentido – a possibilidade de, coletivamente, estruturar um pensamento. A arte em locais públicos proporcionaria, segundo o autor, a criação de espaços livres, cuja duração e acesso são diferentes de espaços normativos e institucionalizados de arte (museus, galerias, teatros). A urbanização generalizada, o deslocamento e o intercâmbio social entre indivíduos , fenômenos pós-Segunda Guerra Mundial, propuseram um contexto artístico em que a arte é feita de aberturas para a discussão ilimitada e, inevitavelmente, questões identitárias passaram a ser intensamente discutidas.
As identidades culturais atualmente não se apresentam como rígidas e imutáveis e mesmo as aparentemente consolidadas como as de “homem/ mulher”, “país europeu/ país latino-americano” se constituem como processos transitórios de identificação. Ao se questionar sobre a própria identidade o indivíduo promove um movimento de embate com a hegemonia, com as questões de hierarquia e os mecanismos sociais que mantém e intensificam as diferenças e especificidades dos indivíduos e dos grupos.
As temáticas que passam a fazer parte de um imaginário e de um discurso da classe artística, tais como a apropriação da cidade, a metalinguagem, a organização política e social de um contexto, se tornam necessárias porque são urgentes, segundo Michel de Certeau. Se tornam discurso e ferramenta de uma arte, porque são elementos ausentes, carências de certo meio.
O evento, promovido pela CiaSenhas de Teatro, “Gilda Convida Maria Bueno” (em sua segunda edição, leia aqui) apresenta inúmeros pontos de convergência entre essas questões. A urgência de se discutir, com a arte, as identidades de uma cidade em suas esferas sociais e políticas. Como principal estímulo para iluminar os temas, surgem Gilda e Maria Bueno. Gilda que “não é homem/ E nem mulher”, “porque pode ser o que quiser” (assista ao documentário Gilda – O Beijo da Boca Maldita aqui) e Maria Bueno, a santa curitibana degolada em praça pública pelo seu amante – ambas figuras extremamente expressivas no que se refere a marginalidade, a violência, à própria cidade e ao tema ‘mulher’.
Durante os dias 27 e 28 de fevereiro houve na Rua São Francisco, no centro da cidade, uma programação que mesclava teatro, performance, cinema, shows, sem que os formatos fossem evidentes e necessários ao acontecimento. Todos os participantes (listados aqui) pareciam ser instrumentos e proponentes de um mesma causa: ora denúncia e desencanto com as formas de “organização” – elemento tão importante ao pensamento cartesiano e tecnicista que não dá espaço ao que “foge”, ao que não é “classificado” – ora deleite com as formas possíveis de se ocupar, resistir e criar no espaço urbano.
“A urgência de se discutir, com a arte, as identidades de uma cidade em suas esferas sociais e políticas.”
A denúncia de uma cidade conservadora, empenhada na sua higienização, que mata e diminui a vida alheia. O deleite em ver Gilda Viva e Curitiba Morta, a importância e a vitalidade da arte que além de encostar na ferida, também a coça com unhas fortes. O desencanto “frente às dificuldades anunciadas pelos poderes municipais e estaduais”.
Todas essas questões estavam vivas ali. Ricardo Nolasco, Cássia Damasceno e Nena Inoue propuseram a ação “GILDA BUENO” que se constituía em uma espécie de beatificação das figuras em questão. Artistas, em sua grande maioria do Água Viva Concentrado Artístico, promoveram o “MANGUEIRAÇO PÚBLICO” na rua de paralelepípedos. Anne Celli, Greice Barros, Janaína Matter e Gabriela Buel trouxeram a tona o, tão atual, processo de “gourmetização” das Santas no cabaré “SANTA-ME”. Os shows de Melina Mulazani, Léo Fressato, Luiz Felipe Leprevost, Simone Magalhães, Banda e/ou em suas apresentações se referiam à cidade, ao corpo e à violência.
Trata-se de um acontecimento de resistência. Ir à rua, estar no espaço público, realmente habitá-lo é um ato de, entre tantas outras coisas, coragem – especialmente quando a arte em questão tem como um dos pontos escancarar questões tão necessárias. Questões que, embora muitos se proponham a discutir, pensar e modificar, alguns vários outros se negam a ver. Em tempos em que o enclausuramento e a institucionalidade, ainda que por vezes fracassados, parecem ser a única saída, ações como essa promovem fôlego, exemplo e inspiração. A arte independente não só resiste em Curitiba, antes disso, ela EXISTE!