Shakespeare é todo espetáculo na nova montagem de Hamlet, do grupo Armazém. O microfone alto no palco, usado sucessivamente pelos atores, é só um dos indicadores dessa escolha de viés.
É uma leitura interessante de algo normalmente passado por alto em outras montagens: enquanto esperam pelo fantasma do rei assassinado, Hamlet e seu amigo Horácio ouvem ao longe os festejos no castelo. O príncipe comenta que esse é um hábito nefasto de seu povo, que poderia ser estirpado nesse momento de luto: o de gabar publicamente os próprios feitos.
Fazendo isso em terno e gravata, as palavras recebendo longas e efusivas palmas, o grupo Armazém – originado há 30 anos em Londrina, mas há muito sediado no Rio de Janeiro – aproxima o Guairinha de Brasília mais do que de Elsinore. Onde o show de horrores e mentiras diante do microfone e das câmeras é diário.

Mas o recurso pró-espetáculo mais evidente na montagem, é claro, são as projeções. Aliás, a grande pergunta que me move antes de assistir a uma montagem de Shakespeare é “como vão encenar o sobrenatural?”. Afinal, trata-se de uma constante nas peças do bardo. O tratamento a ser dado às cenas emblemáticas, como a morte de Ofélia (que só é narrada no texto shakespeariano), também causam grande curiosidade.
Em Hamlet, o Armazém mostra o aparecimento do fantasma do rei Hamlet e o afogamento da doce Ofélia com projeções.
Em Hamlet, o Armazém mostra o aparecimento do fantasma do rei Hamlet e o afogamento da doce Ofélia com projeções. Isso poderia representar um risco: não é fácil fazer contracenar vídeo e ator em carne e osso. Em sua solução, o grupo usa uma estrutura alta como tela, em que o fantasma chega com o pé na porta, com o rock and roll típico das montagens do Armazém, que contribui para o clima de terror, numa edição repleta de efeitos.
Outra cena do texto já deve ter rendido novecentos artigos acadêmicos: a peça dentro da peça. Nela, Hamlet convida atores para representarem o assassinato do pai tal como lhe fora revelado pelo fantasma – que agora cobra a vingança contra o irmão traidor.
Na representação da Ratoeira, do Armazém, uma banda de garagem seduz e agride com palavras e música.
A concepção dramatúrgica de Maurício Mendonça é uma ode a Shakespeare. Ao mesmo tempo em que adapta com palavrões e atualidade, valoriza o texto optando por um belo enxugamento do enredo, que não destoa e não esquece as partes que amamos.
O microfone novamente passa de mão em mão enquanto os solilóquios são transformados num telefonema ou na vontade de dançar. Que venham outras adaptações do Armazém.

Um aparte: o ex-local Luiz Felipe Leprevost faz Horácio e contribui com canções de sua autoria que falam de geada, mostrando um pouco de sua arte. A estética do frio nunca deixa a pessoa.
Ficha técnica
HAMLET | Armazém Companhia de Teatro
Patrocínio: Petrobras;
Direção: Paulo de Moraes
Tradução: Maurício Arruda Mendonça;
Elenco: Patrícia Selonk (Hamlet), Ricardo Martins (Claudius), Marcos Martins (Polonius), Lisa Eiras (Ofélia), Jopa Moraes (Laertes), Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio);
Participação em Vídeo: Adriano Garib (Espectro);
Cenografia: Carla Berri e Paulo de Moraes;
Iluminação: Maneco Quinderé;
Figurinos: João Marcelino e Carol Lobato;
Música: Ricco Viana;
Preparação Corporal: Patrícia Selonk;
Coreografias: Toni Rodrigues;
Preparador de Esgrima: Rodrigo Fontes;
Fotografias e Vídeos: João Gabriel Monteiro;
Programação Visual: João Gabriel Monteiro e Jopa Moraes;
Técnico de Palco: Regivaldo Moraes;
Assistente de Produção: William Souza;
Produção Executiva: Flávia Menezes;
Produção: Armazém Companhia de Teatro;
Classificação: 16 anos;
Duração: 140 minutos (incluindo 10 minutos de intervalo).