Em junho deste ano, o jornalista José Carlos Fernandes publicou um perfil de Edvan Ramos da Silva (leia aqui), um antiquarista que trabalha em Curitiba e pesquisa a história de Maria da Conceição Bueno, dona de uma trajetória que se consolidou quase como sendo mítica e, por isso, distante de ser uma narrativa rígida e austera. As colocações de Silva, que se tornarão livro, ao que consta, parecem legitimar uma desconfiança geral: a possível sagração de Maria Bueno não se dá por motivos alinhados a uma moralidade que contempla os bons costumes e condutas ligadas ao catolicismo. Não, Maria Bueno não é a “moça bonita, injustiçada, vitimada e resignada”, somente. O embranquecimento que fazem dela aniquila parte crucial da história: o fato de ser ex-escrava (da camada mais modesta “sem posses, sem família e sem instrução básica”), a presença em terreiros de umbanda e a significação que tinha para a comunidade negra “recém-liberta” são todas coisas deixadas de lado (inclusive com o desaparecimento de registros e documentos) na criação de uma “santinha curitibana”.
A figura de Maria Bueno surge acompanhada de uma singularidade exatamente porque é alheia às normas: filha de escravos, “uma mulher só, madura, livre, envolvida com alguém de sua escolha” no cenário urbano curitibano (se o conservadorismo e moralismo matam atualmente parece ser pouco provável que fossem fenômenos menos danosos em 1893). Foi brutalmente assassinada por Ignácio José Diniz, um soldado com quem namorou. O questionamento “Maria Bueno: puta ou santa?” se tornou a questão principal, parecendo indicar as únicas duas possibilidades a uma mulher, ou é puta ou é santa – jamais as duas coisas, jamais outras coisas.
A montagem de Maria Bueno, escrita e dirigida por João Luiz Fiani (nomeado o novo secretário de cultura do estado do Paraná há um mês) se apresenta bastante redutora frente às tantas discussões que essa mulher evoca. Supostamente criada “sem a intenção de tomar um partido”, a peça é absolutamente partidária e, a todo o momento, revela a posição de que se fosse puta, Maria Bueno jamais seria a “nossa santinha”.
“A quem interessa a criação de uma santinha-curitibana tão afastada do universo popular do qual pertence Maria Bueno?”
A personalidade de uma Maria branca, sofredora, vitimada e crente surge em contraste com a presença de “monstros” que se fizeram presentes na vida dessa “boa moça” – relações de poder que parecem sempre culminar no potencial bondoso que tem a “santa”. A encenação lembra um júri simulado escolar de Dom Casmurro em que a discussão é se Capitu traiu ou não Bentinho – nesse caso, o julgamento de Ignácio José Diniz é compartilhado com a plateia.
Mesmo que sejam precisas algumas informações, parece haver um desconhecimento sobre a figura, o que resulta em uma produção que exalta Maria Bueno por motivos contrários aos que a fizeram se tornar quem é. Ainda que se trate de uma obra ficcional, ainda que se trate de um processo criativo que assume recursos “interpretativos” e recortes específicos: é exatamente essa a questão. A quem interessa a criação de uma santinha-curitibana tão afastada do universo popular do qual pertence Maria Bueno? A quem interessa uma santa dos pinheirais descaracterizada e afastada das suas especificidades, negando a cor da pele, a representatividade e a expressividade de ser mulher, livre, independente e – por que não – puta?
SERVIÇO
Maria Bueno
Quando: 10/7 a 30/08, Sextas e Sábados, às 21h; Domingos, às 19h
Onde: Teatro Lala Schneider, R. Treze de Maio, 629, Centro, Curitiba
Quanto: Sextas: R$ 30 (½ entrada: R$ 15) Sábados e domingos: R$ 40 (½ entrada: R$ 20)
(Recebi um e-mail semana passada que questionava o fato de não haver nesse espaço textos sobre peças que estão em cartaz na cidade, mas não são daqui. Explico: a produção desta coluna tem sido sobre o teatro local. Por enquanto, é possível produzir um texto por semana sobre peças de Curitiba – ainda que em algumas semanas não exista nada “novo” em cartaz e, no entanto, em outras um número bastante grande de coisas para ver. Tento ir a “tudo”. Nem sempre é possível. Seguimos!)