Hoje peço que me perdoem os caros leitores, mas é preciso fazer algo um tiquinho mais pessoal. Hoje acordei estrangulado, antes das sete da matina, e resolvi caminhar pela vida como quem constrói um varal. Um varal de memórias, fundado no chão batido de minha cuca oca, travestido de glória passada, de vida tocada; um varal quase vazio, que sobrevive em nome de uma história perdida antes do fim. Nesse dia inacabado, talhado por uma criança boba, acordei com a vontade de correr até o bosque mais próximo e assistir à peça que houvesse naquele teatro em que aprendi a adorar a arte do palco.
Besteira minha, é fato, mas uma besteira que se leva a cabo pelo simples desejo de reviver aquilo que não volta. Não há eterno retorno quando se reencontra o que está morto, refém das moscas e dos engravatados, submetido aos eleitores de um tal Jonas, assassinado por mero contrato. Hoje eu acordei assim: aprisionado por um mundo que desmorona e que arremessa seus escombros no pouco da minha face. Hoje eu fui até o teatro da minha infância, com a esperança de reencontrá-lo, e ali só avistei correntes e cadeados, uma tristeza feita de ferro e de aço. Uma tristeza chamada saudade.
De todos os sentimentos possíveis a um ser humano, passando do amor profundo ao oco do ódio, viajando pelas entranhas espessas da raiva, passeando através da coroa imunda do tédio, resolvi, sem saber ao certo o motivo, me engraçar com a saudade ao invés de dar o último gole no copo do orgulho. Ai de mim! Cresci como um cabra empoeirado, admito, e além da cabeça dura cultivei uma nuvem negra saudosista que insiste em arder nesse peito vazio que carrego.
Ela, a saudade, se achega aos poucos. Tem a forma de um palco pobre, transbordando um bosque inteiro esquecido dentro de mim. Nas noites escuras eu chamo seu nome, Carlitos Maia, apesar de saber que seu batismo deu-se em tom de homenagem a esse homem que, confesso, nunca conheci. No lombo dessa saudade cavalguei durante a infância, indo e vindo nos ônibus precários das escolas, correndo com a boca entupida de pastel e esperança, desejando uma vida que hoje se esvai diariamente na cavalgada das lembranças que tenho desse espaço sagrado apenas para mim.
Minha saudade arde feito um teatro trancado, submetido às correntes e ao descaso, jogado entre as folhagens e os bichos magros que ali convivem com policiais, bombeiros e velhos num trote matinal em direção ao abandono.
Minha saudade arde feito um teatro trancado, submetido às correntes e ao descaso, jogado entre as folhagens e os bichos magros que ali convivem com policiais, bombeiros e velhos num trote matinal em direção ao abandono. A minha saudade tem gosto de fé e de fel, tombado no cocho insignificante das artes de um Brasil que desaprendeu a viver. Mas por mais que pareça bobo, minha saúde é um ato de fé em completo e obstinado desdém pela letra L, transformando em luta o que até então era luto, reverberando pela madrugada um grito constante de horror.
A minha saudade, eu vos digo, é fé. É um caminho escuro, lajeado pela insegurança, estrangulado por dois meninos, o certo e o errado, num caminho inconstante e torto, feito um grito sufocado pela insegurança e pela impossibilidade atordoante que assombra todo artista. A minha fé é minha. Uma fé faca cega, trincada no meio pela rotina, cortante e perigosa não pelo fio, mas pela teimosia. É arma branca que dança no escuro de mim mesmo, ora colada na mão, ora presa na garganta, regida pela rigidez do dia-a-dia e do desassossego. Com ela sofro, por ela vivo, sem ela padeço.
A minha fé tem os pés no chão e a cabeça nas nuvens, infelizmente. É uma crença que sobrevive, insiste, atenta; grita e arrebenta, consome e alimenta. Parece tão pequenina, tadinha, mas é valente e abusada. A minha fé existe, resiste e sorri mesmo quando parece amordaçada. É gargalhada, beijo na boca, bomba de neutron; é tudo ou nada: feito uma mania desvairada de vida que, quando transloucada, sai às ruas de manhã e conquista o pão que me movimenta as pernas e revigora a alma.
A minha fé é isso, simplesmente isso: promessa regressa, estupidez contínua, sopro jogado contra o horizonte cinza de um país jogado às traças. A minha fé é um teatro cravado no bosque, onde tudo parece possível, por mais que não o seja.