Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que o texto de hoje é uma tarefa inglória, afinal é quase impossível opinar sobre aquilo que desconhecemos. No entanto, e creio que todos os leitores concordarão comigo, é também impossível não escrever ou pensar a respeito da experiência do diretor Jan Fabre em Monte Olimpo. A peça, que dura 24 horas e foi encenada no início do mês em Madrid, é um acontecimento único que dá as caras de tempos em tempos mundo afora, a maioria deles em solo europeu, e tem sido motivo de discussões acaloradas nas colunas especializadas e rodas de conversas nas coxias e bares ao redor do globo.
Goste-se ou não da obra e de seu conteúdo, é preciso admitir que o espetáculo é dessas iniciativas raras, que acontecem de maneira bissexta e encantam pela própria existência. Por conta disso, e pelo gosto insaciável que a coluna “Em Cena” tem pela polêmica e pelo inaudito, mergulhamos no abismo dionisíaco de Fabre e sua trupe em busca das folhas da videira do Deus grego que encantou, e ainda encanta, multidões.
O Monte Olimpo, para os que não o conhecem, é um lugar icônico, sagrado, cravado na região da Tessália e no inconsciente da humanidade como morada dos 12 Deuses do Olimpo, os principais do panteão grego. A montanha, que tem 2.917 metros, é destino de turistas durante todo o ano e está próxima ao mar Egeu, aquele das famosas falésias. Hoje, quando pisamos diante do Monte, não encontramos mais as nuvens que, segundo a mitologia grega, davam acesso ao “terreiro”, mas é possível apreciar, mesmo que de longe, seu cume coberto de neve e sua grandiosidade estonteante. Monte Olimpo, agora falo sobre a peça, também criou fama ao redor do mundo e, como era de se esperar, atrai para as filas de suas sessões uma legião de curiosos. Afinal, como diz um gordo Dioniso no início dos trabalhos de Monte Olimpo: “Todo homem precisa de um pouco de loucura”.
“VISCERAL! MONUMENTAL! CATÁRTICA! UM DOS ESPETÁCULOS MAIS VANGUARDISTAS JÁ VISTO!” É assim, em caixa-alta e sempre acompanhado de um ponto de exclamação, que a encenação de Jan Fabre é tratada nos cadernos de cultura das cidades por onde passa. É evidente que a montagem nem sempre agrada a todos, e por isso mesmo causa esse estranhamento. Transitando entre a surpresa e o entusiasmo, entre a adoração e a dúvida, o espetáculo segue em alta, tendo como maior aliado um “marketing” espontâneo gerado pela curiosidade e alimentado pelo próprio diretor em suas entrevistas.
Transitando entre a surpresa e o entusiasmo, entre a adoração e a dúvida, o espetáculo segue em alta, tendo como maior aliado um “marketing” espontâneo gerado pela curiosidade e alimentado pelo próprio diretor em suas entrevistas.
Mas afinal, o que é de fato essa experiência descrita pelo próprio autor como “um autêntico ritual grego”? Vamos por partes! De início, a ideia do diretor parece megalomaníaca, para dizer o mínimo. Ele diz que trabalha no projeto desde 2009, quando resolveu reunir em um único espetáculo as 33 tragédias gregas. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes estão ali, é claro, como também estão os seus grandes personagens.
Pelo palco passam Prometeu e Medeia, Antígona e Creonte, Hércules e Hécuba; além de um infinidade de Sátiros e Ninfas, todos comandado pelo rei dos palco: Dioniso! A plateia não deixa por menos: Almodóvar, Israel Elejalde, Luis Luque e Aina Clotet foram conferir o trabalho, além de tantos anônimos ligados ao teatro, e outros tantos curiosos que formaram o público de 850 espectadores que, no caso de Madrid, tiveram de garantir o seu ingresso com 06 meses de antecedência. Sim, as “cadeiras” para a apresentação única esgotaram-se em julho, mesmo mês em que foram postas à venda.
Em uma matéria especial para o El País, o cineasta Javier Giner se submete ao teste. Munido de uma mochila com mudas de roupas, 03 maços de cigarro e muito entusiasmo, Javier conta, ato a ato, a experiência de assistir ao espetáculo. Entre selfies e tragadas, Javier comenta seu desgaste físico e mental durante a maratona e se diz surpreso com a energia que público e atores têm ao fim da peça. Sobre o final, o cineasta não conta novidade alguma: “é uma catarse”.
A peça
“O que pretende um diretor com uma peça que dura 24 horas? Averiguar se a catarse ainda é possível atualmente, romper a ditadura do tempo reinante no teatro, levar os espectadores a um estado de vigília onde pudessem retirar suas máscaras racionais e compreender a linguagem dos sonhos. Essa é a linguagem da qual se utilizam as tragédias gregas, a linguagem do sonho”, diz Jan Fabre.
https://vimeo.com/135072472
“Você é um louco!”. O diretor da peça Monte Olimpo, Jan Fabre, não consegue precisar quantas vezes ouviu essa frase de seus produtores e atores desde que resolveu informá-los a respeito de sua nova ideia: uma peça de teatro que duraria 24 horas e reuniria, em um único espetáculo, todas as tragédias gregas. Uma releitura das tais Dionisíacas, culto a Dioniso, que levaria ao extremo todos os envolvidos: atores, diretores, produtores, técnicos, organizadores e público.
Apesar das negativas, e dos gritos de “louco!”, Fabre manteve-se firme e organizou, pouco a pouco, suas ideias em uma linha central: Dioniso seria o grande “mestre de cerimônia” da coisa toda. Ele é quem conduz a loucura e leva todos à catarse, à iluminação profana que livra de velhas e ignóbeis couraças e nos libera os instintos mais primitivos, sejam eles bons ou ruins. Junto a Dioniso se seguiriam todos os personagens das tragédias gregas, dançando e copulando no palco, matando e fazendo viver cada gota de sangue dentro do corpo de todos.
Simples? Nem um pouco! Para chegar ao ponto onde queria o diretor não poupou esforços. Depois de leituras intermináveis e muito estudo, diz que juntou toda a equipe no teatro e trabalharam mais de um ano diariamente, sem folgas, em ensaios que se estendiam tarde e noite adentro. Depois de tudo pronto e marcado, ainda se dedicaram a ensaios corridos por longos três meses, segundo o próprio criador da obra.
Mas o que é realmente o Monte Olimpo de Jam Fabre? Com a palavra o próprio diretor: “é uma sucessão de tragédias gregas, uma grande orgia Dionisíaca. Temos, é claro, cenas de sexo e nudez, sangue e violência, mas não tratamos apenas disso. O queremos de fato é tratar de liberdade, de liberdades individuais e coletivas que estão sempre em risco. Tudo está divido em 14 capítulos. A princípio, pode parecer que o grande nome da peça é Dioniso, mas, no entanto, o maior protagonista de Monte Olimpo é a família. Usamos diversos idiomas na peça, entre eles inglês, francês, alemão, holandês e italiano. É um autêntico bacanal grego”.
O bacanal de Jan Fabre passou, até o momento, por 18 cidades, e em todas elas causou algum tipo de reação. Na estreia em Berlim, por exemplo, ao fim da peça, no auge da catarse proposta pela trupe, a plateia aplaudiu o espetáculo durante 40 minutos ininterruptos enquanto atores exaustos continuavam dançando mesmo sabendo que tudo já havia terminado. Ao todo são 27 atores, ou “guerreiros da felicidade”, segundo o diretor, que se revezam em papéis e performances nada ortodoxas no palco.
‘O que pretende um diretor com uma peça que dura 24 horas? Averiguar se a catarse ainda é possível atualmente, romper a ditadura do tempo reinante no teatro, levar os espectadores a um estado de vigília onde pudessem retirar suas máscaras racionais e compreender a linguagem dos sonhos.’ Jan Fabre
Se por um lado há uma explícita e necessária crítica ao teatro convencional, e sua obsessão pelos 120 minutos de espetáculo, fica no ar uma dúvida: porque Jan e seus guerreiros escolhem teatro com a velha divisão palco/platéia (palco italiano) para promover sua peça rito? É claro que existem questões técnicas. Os teatros precisam ter “quartos” que servem para o público dormir durante os intervalos, ao todo são 04 intervalos de 01 hora cada. Além disso, é preciso que toda a estrutura esteja o tempo todo acessível: banheiros, cafés, portarias. No entanto, precisamos admitir que é absolutamente cansativo assistir a uma peça de 24 horas enquanto público fica passivo diante das ações, engessados nas velhas e empoeiradas poltronas dos teatrões tradicionais.
Se o tempo judia dos atores em cena, e ao longo de seu passar podemos ver a “decrepitude e a angustia” desse corpo exausto, o mesmo pode ser dito do público. Quase ninguém opta por sair do teatro, o que é possível através das disputadas pulseirinhas vermelhas que são entregues no início da peça. Apesar dessa possibilidade, raríssima, todos querem viver a experiência por inteiro, mas a verdade é que quase impossível assistir a todo o espetáculo. Segundo as críticas de diversas cidades por onde o espetáculo passou, existem períodos, ou capítulos, em que não existem mais de cinco espectadores na plateia e mesmo assim os atores estão a todo o vapor. Essa mistura de teatro, dança, ritual e performance tem dado certo. Segundo Natalia Álvarez Simó, diretora do Teatros del Canal, a apresentação de Monte Olimpo na cidade foi “o evento do ano”.
Polêmicas
Assim como outros trabalhos de Jan Fabre, Monte Olimpo também coleciona polêmicas. A maioria delas não vem de espectadores, mas de críticos de teatro, e são direcionadas à concepção da coisa como um todo e dos “excessos” do diretor. O público, como era de se esperar, simpatiza com tudo mesmo antes de entrar no teatro e ver a cara do espetáculo. Muito desse encanto deve-se ao fato de que precisamos devorar ídolos e espíritos transgressores, mesmo que essa transgressão esteja limitada às extremidades do palco e sirva mais para lotar salas de teatro do que para colaborar com algum tipo de transformação da sociedade. Além disso, atores que se dedicam 24 horas a um espetáculo exaustivo e complexo como esse merecem algum crédito e muito do nosso respeito.
Há, no mínimo, uma espécie de simpatia pelo esforço em nome da arte, tanto que não faltam gritos de incentivo vindo da plateia para que os atores/atletas não desanimem. Diferentemente do público, alguns críticos enxergam absurdos na montagem de Fabre. Liz Perales, colunista do El Cultural, é uma delas. Ao mesmo tempo em que admite que Jan Fabre é um artista plástico com uma estética poderosa e que a peça possui uma “dramaturgia” extraordinária, a jornalista é precisa quando escreve que “para servir ao seu ideal de beleza, o diretor submete seus escravos, ou guerreiros, a ações extremas, algumas delas absolutamente degradantes e desnecessárias no meu ponto de vista. E não falo de um ponto de vista moralista”. E continua: “Enquanto atores e atrizes denunciam abusos sexuais praticado por seus superiores no ambiente de trabalho, a Jan Fabre tudo é possível e aplaudimos qualquer uma de suas iniciativas sem pensar a respeito pelo simples fato de ser considerado um gênio”. É possível que Liz esteja se referindo à cena de “fistfucking” que acontece no espetáculo, quando um ator introduz o punho no ânus de outro em uma alusão à loucura que invade Hércules.
Outra polêmica levantada, dessa vez por ativistas, foi o fato de todos os atores e atrizes serem brancos. A esse argumento Jan respondeu que não passa de uma coincidência, afinal, escolheu os atores pelo talento e não pela raça. Entre erros e acertos, a verdade é que, enquanto discute-se isso ou aquilo, o espetáculo segue lotando as salas de teatro por onde passa e causando furor nos cadernos de cultura.
O diretor
Jan Fabre é um “multiartista”. Entre as suas ocupações, destacam-se as de artista plástico, escritor, diretor, coreógrafo e designer. Formado pela prestigiada Royal Academy of Fine Arts, destacou-se no mundo da performance com o trabalho Money, que consistia em queimar notas diversas e escrever a palavra que dá título ao trabalho com as cinzas que restaram. Em seguida, aderiu à bodyart e fez uma performance em que usava o próprio sangue para desenhar, intitulada My body, my blood, my landscape.
Em 1980, estreia como diretor de teatro e desde então se dedica a unir todos os seus talentos em espetáculos que desafiam público e atores de diversas formas. Sempre polêmico e inovador, foi vítima de diversos protestos de sociedades dos animais por conta de suas performances. Em uma delas, pessoas atiravam gatos em direção às escadas da prefeitura de Antuérpia, uma homenagem a Salvador Dalí, segundo Fabre.
Como decorador, foi responsável por um espaço intitulado Heaven of Delight, no Royal Palace. Colaborou com diversos coreógrafos de renome, entre eles os gigantes William Forsythe e Jiri Kilian. Polêmicas e méritos estéticos à parte, Fabre segue seu caminho com obras sempre interessantes, que tiram todos do lugar-comum e nos fazem refletir a respeito de tudo, inclusive dos limites da própria arte. Talvez a melhor definição para o seu trabalho seja a que ele mesmo deu, em entrevista recente: “Me considero um servo, apenas isso. Um servo da beleza, afinal, ela é a cor da liberdade”.
Monte Olimpo é isso: uma peça única, que talvez dure mais do que deveria e é idolatrada mais por conta dessa “sobrevida”, desse exagero, do que de seus méritos estéticos e ideológicos. Evidente que uma peça que dura tanto tempo é algo a ser visto, e que talvez nunca mais se faça algo do tipo. No entanto, somente isso não basta para que criemos gênios incompreendidos. Um filme, ou uma peça, é bom pelo seu conteúdo e não por conta de suas polêmicas ou de sua duração.
O frisson causado pela peça de Jan Fabre não parará por aí, é claro. Em breve, o belga arrumará outro teatro para colocar a sua experiência em cartaz, então levará novamente multidões ao teatro para conhecer a tal “loucura” que aquele Dionisio gordo tem a oferecer. O público ainda estará li, massacrando-se em filas meses antes do espetáculo, cobiçando uma pulseira vermelha para, como Javier Giner, garantir algumas selfies junto aos guerreiros da beleza e muitos likes nas redes sociais.
Como disse anteriormente, é impossível escrever sobre aquilo que não conhecemos, ou como no caso, que não assistimos. Mas pesquisando vídeos do espetáculo, e ao ler as entrevistas e críticas menos afetadas e entusiasmadas, fica a impressão de que o grande trunfo do espetáculo de Fabre é durar muito sem ter tanto a dizer. Entre músicas eletrônicas, mãos cavoucando pregas, gritos e colchonetes, a única certeza que fica é a de que o voyeurismo está sempre em alta na humanidade, e que infelizmente sempre precisaremos de ídolos, gênios e heróis, independente da qualidade de suas obras ou de suas mil faces