A quem pouco conhece teatro, e não tem idéia de todas as etapas que envolvem a produção de um espetáculo, a parte mais importante é sempre aquela que chega aos olhos, ou seja, os atores. Impossível negar que, ao falarmos de teatro, lembramos sempre daquelas figuras imponentes que reinam em cena, iluminadas e hipnotizantes, brilhando e ecoando feito uma estrela cadente rasgando a escuridão do palco. É claro que sem os atores o teatro não se realiza, e que de todos os envolvidos no processo são eles, atores e atrizes, que detêm a maior possibilidade de encantar, marcar e despertar a paixão do público. Talvez alguns diretores, daqueles que o tempo, o talento e a autopromoção tornaram gigantes, também exerçam esse fascínio. No entanto, os atores são imbatíveis. Nem mesmo os dramaturgos conseguem ameaçar o seu reinado, afinal, os dramaturgos são escritores e estes possuem um ranking próprio e desconhecido de encanto.
Brincadeiras à parte, a verdade é que nem sempre a realidade é tão simples e explícita. Muitas vezes, é preciso escarafunchar, chacoalhar, abanar com as mãos a fumaça espessa que encobre detalhes perdidos pelos cantos. Só assim, mergulhando as mãos no desconhecido, é que podemos finalmente descobrir o que se passa por de trás do nevoeiro. No entanto, não é exagero dizer que alguns profissionais podem ser considerados tão ou mais importantes para a história do teatro do que diversos atores e diretores e que, como esses, também devem ter seus nomes impulsionados a altura máxima. Esse é o caso de Flávio Império.
Flávio Império (1935 – 1985) foi cenógrafo, artista plástico e arquiteto. Na verdade, Flávio foi muito mais que isso. Flávio Império foi um inventor, um alquimista. Foi, acima de tudo, um sonhador. Para muitos, é o grande responsável por uma renovação da linguagem cênica, um sopro de novidade na maneira de se pensar e “desenhar” o teatro. Para outros, é uma espécie de Deus, criador de um novo mundo através de seu trabalho nos palcos. Talvez o cabra tenha mesmo um pouco de santo e um tanto de sátiro, e é fato que foi um dos maiores responsáveis por uma renovação do teatro moderno brasileiro.
Devemos muito, a começar por trazer seu nome, e principalmente o seu legado, ao conhecimento do grande público.
Além disso, é também um grande personagem, e o que não faltam sobre ele são grande histórias. No “meio teatral”, e me perdoem o termo horroroso, mas os colegas andam cada vez mais em seus meiozinhos, Flávio Império é celebrado como o gigante que foi, e ainda é. Qualquer estudante acaba esbarrando com seu nome em algum momento pelos livros. Todo ator sabe dizer ao menos uma de suas diversas contribuições às artes cênicas e em toda coxia alguém relembra uma de suas famosas histórias enquanto entoa a uníssona e merecida frase: o cara era genial!
Sim, Flávio foi também uma espécie de gênio, por isso, e por tudo que já dissemos acima, é impossível em um simples texto definir o tamanho de sua importância, enumerar seus incontáveis trabalhos ou dizer ao certo o quanto o teatro brasileiro deve a ele. Devemos muito, a começar por trazer seu nome, e principalmente o seu legado, ao conhecimento do grande público.
Império trabalhou com os maiores nomes do teatro nacional, entre eles Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, José Celso Martinez Corrêa, Cacilda Becker e Walmor Chagas. Grafou, com a pena do talento e do trabalho duro, seu nome na história das maiores companhias do país, como o Teatro Oficina, Teatro de Arena e Teatro Experimental Cacilda Becker, entre outros. O amigo Zé Celso, por exemplo, define Flávio como “o primeiro cenógrafo com quem trabalhei. Ele já trazia, desde aquela época, o conceito da inexistência de fronteiras entre o teatro, arquitetura e urbanismo. E assim já revolucionava totalmente a ideia de espaço cênico”.
Um revolucionário! Talvez essa seja uma das principais maneiras de definirem Flávio Império. Nesses tempos esquisitos, onde o conceito de revolução parece tão desgastado e confuso quanto os nossos espíritos, é importante ressaltar a inquietude e a busca pela ruptura que sempre marcaram a obra do cenógrafo e o levaram a, por exemplo, se arriscar a dirigir encenações e voltar a se arriscar com novos caminhos, numa corda bamba frouxa e de olhos vendados. Uma busca pelo desconhecido. Flávio fez do teatro sua busca e desse desconhecido sua devoção. Dedicou seus dias e sua vida a essa arte e não se cansava de repetir que era muito grato à possibilidade de criar e viver o teatro, já que o mesmo o havia ensinado a viver.
Flávio é o primeiro. Império abre os caminhos para que outros desfilem por aqui, trazendo com eles a inspiração e sabedoria, e nos contaminando com a beleza de suas criações e os mistérios de suas almas. A nós, nesse contexto, cabe pouco. Talvez acender um cigarro, separar um bom gole de bebida forte e pedir a benção de todos esses “orixás”, estejam eles vivos e na ativa ou encantados e guardados pela eternidade. Em algumas culturas, acredita-se que comendo a carne de seus guerreiros e sábios estamos nos apropriando de sua coragem e conhecimento, quem sabe. Nós que temos por princípio o rito e não a crença, nos damos por satisfeito e seguimos à risca o conselho. O que realmente importa por aqui é a fome. Bora “comer gente”?