Um dos maiores poetas que conheci nunca carregou consigo um livro sequer. Aliás, além de ler com muita dificuldade, confesso que nunca o vi nem mesmo com um simples lápis. Hélio trazia nas duras e calejadas mãos apenas um chapéu de feltro, bem velhinho, e uma mancha escura causada pela “baba” da bananeira, como ele dizia. O senhor, que à época deveria ter ao menos uns sessenta anos, era desses homens duros, é bem verdade, mas, na realidade, o coroa conservava no rosto era um sorriso camuflado de carranca. Diante do maltrato do tempo o velho sabia que não podia dar mole. Não deu!
Nos intervalos de seu serviço, Hélio era o faz-tudo da escola infantil em que estudei, o homem puxava de seu maço de cigarro vagabundo, de filtro branco. Esticava os oleosos e ralos cabelos que minguavam na lustrosa careca e, com o auxílio de seu assobiar, desandava a cantar suas dores e amores, seu sonhos e frustrações, tudo na base do seu “paracatumbumbá”, como gostava de dizer. Quando a lua caia, diziam que o sossego começava se perder diante do fervor do seu sangue boêmio e o camarada despencava pelos botequins da Vila Teixeira encharcando as notas de sua melodia com cachaça e Cynar. No início da madruga, voltava exausto pra casa que dividia com sua irmã e dormia, por algumas horas, o delicioso sono alcoólico dos desesperados. No dia seguinte, pulava cedo, antes das seis da matina, e amargava a boca com café e rotina. Tudo recomeçava, inclusive a vontade de poesia que o inundava.
Eu, uma criança comum, considerava o velho um gênio por conta de suas composições, e confesso que talvez ainda hoje o considere. Suas canções eram lindas! Hélio deixou, dizem, mais de cem letras escritas, uma obra inegavelmente extensa para alguém que nunca se considerou um criador. Aos que o chamavam de compositor ou poeta, o velho não titubeava: rechaçava a coisa logo de cara e soltava o famoso bordão “o dia que eu me considerar escritor, vou me achar maior do que o que escrevo. O que nos mantém na ativa é a tentativa. Quando conseguir, eu paro com a música e começo a cozinhar”.
Fernando Arrabal, para os que desconhecem, é um dramaturgo espanhol da melhor qualidade. De escrita combativa e perturbadora, Arrabal passou pelo sumiço do pai, foi preso e julgado pelos Franquistas, fundou junto a Jodorowski e Roland Topor o Grupo Pánico e foi amigo de Andy Warhol, Tzara e Breton.
A sabedoria do velhote, além de admirável, é necessária. É evidente que toda profissão requer estudo, a coisa aqui não tem a ver com o conhecimento ou a profissionalização, por exemplo. A coisa tem a ver com respeito, e a história de Hélio é necessária para ilustrar o que contarei a seguir. Semana passada, participei de uma leitura aberta de uma peça de Arrabal. Fernando Arrabal, para os que desconhecem, é um dramaturgo espanhol da melhor qualidade. De escrita combativa e perturbadora, Arrabal passou pelo sumiço do pai, foi preso e julgado pelos Franquistas, fundou junto a Jodorowski e Roland Topor o Grupo Pánico e foi amigo de Andy Warhol, Tzara e Breton. Vê-se, portanto, que estamos tratando da obra de um gigante. Pois bem, a coisa era simples: leríamos a peça diante do público, passaríamos a coisa durante semana e, ao fim do evento, teríamos um debate, na ocasião chamado de “falação”, para discutir a obra e a vida de Arrabal através da leitura da peça. Ótimo!
A leitura correu maravilhosamente bem. Poucos problemas, a direção foi tranqüila e precisa, o espaço era excelente e o clima estava ótimo. O problema veio na tal “falação”. A platéia, como em muitos eventos do tipo, era formada, em grande parte, por estudantes e profissionais da área. Até aí tudo bem, no entanto, a cada fala, vindas do palco ou da platéia, o que se via era uma tentativa não de debate, mas de massacre. A busca não pelo conhecimento, mas pela consideração.
Nunca em toda minha vida eu havia me deparado com algo tão estranho, e confesso que há algum tempo não participava de debates pós-peça ou filmes, como nos cineclubes. As perguntas feitas são obrigatoriamente antecedidas de um breve currículo. Indagações interpretadas através de gestos programados e citações de livros, livros e livros. Nunca vi tanta gente que lê tanto, coisa linda. Diante dessa peleja de egos, não precisa ser nenhum gênio para adivinhar o resultado da “falação”: falou-se muito mesmo, mas pouco sobre o que interessa realmente: o teatro e a obra. Apesar da indisfarçável chateação, sai normalmente de lá. Ao comentar com um amigo, que também participara da leitura, o mesmo me responde com a seguinte frase: “parece que virou ator agora, a gente é assim mesmo!”.
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Atores são assim mesmo! Sai de lá com a frase dita pelo amigo martelando em minha cabeça, e então me lembrei de Rubens Teixeira, o Rubão. Rubão foi um dos gigantes do nosso teatro. Trabalhou muito, com muita gente e muito bem. Lembro-me até o hoje do orgulho que tive a primeira vez em que esbarrei com uma foto sua em um livro. Ao lado de Cacilda Becker e Walmor Chagas, o Rubão, meu professor, pousava diante do imponente TBC.
Em sua primeira aula, lembro-me como se fosse hoje, Rubens Teixeira, ainda o tratava de Rubão, entrou na sala e se apresentou. Ao invés de um currículo, o velho contou a história de sua vida, contando da fome que passou para se mudar pro Rio de Janeiro e de como invejava aqueles que podiam pagar a passagem do trem na Central do Brasil. A ele cabia voltar a pé pra casa, escondendo na bolsa a sapatilha e os adereços, já que o pai o havia proibido de fazer aquela “arte de bicha”. Disse que durante muito tempo se envergonhou da situação, e que muitas vezes negava comida e carona para não parecer estar na pior. Depois de nos contar tudo isso, disse que depois de velho, Rubão deveria ter uns setenta anos à época, arrependeu-se de poucas coisas na vida, mas aquela vergonha era uma delas. Nos ensinou, naquela noite, e não esqueço suas palavras, uma lição tremenda. Rubão disse que a quem se propõe o ofício do ator cabe quase tudo, menos vaidade. Afinal de contas, como ele mesmo disse, um homem que viverá de anular seu corpo, consciência e intelecto para dar vida no palco a personagens, essas sim dignas de brilho, não deve se apegar à sua própria imagem ou história. “O bom ator consegue domar seus impulsos, o ótimo ator desconhece até quem já foi”, dizia o velho.
Melancólico, caminhando com o olhar perdido e a garoa a me acariciar os cabelos, lembrei da gargalhada de Rubão e do pito de Tio Hélio. Assobiei, mesmo sem me lembrar, uma canção daquele homem e segui na chuva, de cigarro aceso, com a certeza de que o teatro é território da simplicidade daquele menino faminto, e não do garoto de tênis colorido que vomitava métodos e nomes. Não, atores não são assim mesmo, ao menos não todos. Alguns de nós sabemos que o teatro, mais do que referências, precisa da beleza do Paracatumbumbá e do amor daquele menino faminto, afinal, todo ator não passa de um servo, entregando seus domínio pra Dioniso cumprir seu rito. O resto é, como diz o ditado, “nome bunito pa engana o escutador e da outra cara pro que não importa”.