Encontrei Cristina em um café. Há tempos não a via. A última vez que esbarrei com essa mulher feita de história, ela brilhava em um palco iluminado, recebendo uma saraivada de aplausos depois de incorporar magistralmente Medeia, personagem forte e complexa de Eurípedes. Durante aquela temporada, Cristina foi gigante. No tablado, depois de duas horas de tragédia, carregando nos ombros o peso dessa história, foi brilhante.
As críticas a elevaram a um estrelato inglório, daqueles que passam feito cometa no céu particular da gente. Não ganhou prêmios, é bem verdade, pois esses são, na maioria das vezes, reservado às grandes produções e não a nós, operários da cena, mas a guria encantou, e muito, toda plateia que despencou de casa para assisti-la destroçar o irmão e assassinar os filhos por vingança.
Aquela Cristina Medeia, à época, era infinita feito o palco onde a jovem atriz impressionava a “multidão” naquela Corinto moderna travestida de Paulicéia. Isso naquele tempo, quando ainda era permitido a nós colecionar devaneios e planos. Isso naquele tempo que morreu no fim do ato. Pano que caiu. Cerveja gelada que esquentou na praça. Um beijo que secou no rosto seguido dos devidos parabéns já gastos e só; nunca mais nos encontramos.
Agora estamos num café. Um lugar bonito, repleto de xícaras penduradas na parede, donde se toma, a um preço salgado, um café metido a besta passado na hora. Pedi um cigarro e um mini no caixa. Encostei no balcão. O cheiro do grão moído e torrado passeava pelo espaço feito fosse uma dama que todos admiram. A luz baixa, amarelada, quase âmbar, alumiava as mãos passeantes daquela moça que sorria diante de cada cliente. A sinfonia dos pires descansando no escorredor de pratos misturava-se aos gritos das colheres que investiam contra o líquido negro rebolando no fundo dos copos. Potes de açúcar pela bancada de mármore: refinado, orgânico, demerara. A moça sorria do lado de dentro do balcão enquanto nos servia. Era Cristina. Eu a reconheci. Ela, no vai e vem do fluxo daquele comércio, passou os olhos batidos por mim.
Era horário de pico, o sol luzia pelo vidro dourando seus cabelos. Lembrei de Jasão, seu irmão retalhado, e soube, por sua boca pintada de mágoas, que aquela personagem não havia assassinado apenas seus filhos. Cristina, feito uma Medeia moída, também assassinou seus sonhos. Ela então praguejou. Se mostrou feliz apesar da raiva e disse que o café lhe deu a guarita que o teatro desde sempre lhe negou. Cristina, com dois filhos e um marido no lombo, deixou o palco para entrar na vida. Sem história ou passado, lutando de hora em hora naquele balcão em nome de sua sobrevivência, deixou claro: Medeia, hoje em dia, é apenas uma saudade que dói quando pensa no que poderia ter sido. Isso se tivesse sorte, e se não tivesse rebentado nesse país faca afiada que nos corta a garganta a cada passo.
Terminei o café, um tal de robusta, sorrindo pro seu desespero. Disse que há tempos também não atuo, mas que escrevo sobre o tema, e que o teatro de alguma maneira continua em mim: judiando de meus pensamentos, correndo pelo pouco do meu sangue, atroçoando o meu espírito estraçalhado. Sai do café. Segui na chuva, molhando até os ossos, tentando fumar um cigarro encharcado enquanto me lembrava dos tantos amigos que deixaram de lado o seu sonho de viver do teatro para, de fato, sobreviver nesses tempos arredios. E assim, entre um susto e um trago, pensei no quanto essa brava gente que acredita no sonho em que insisto sofre por tentar viver daquilo que os alimenta o espírito. Como é difícil, e vos digo isso com extremo conhecimento de causa, viver de teatro num país que combate seus artistas, marginaliza seus criadores e coloca o cifrão, e só ele, como moeda de troca no front.
Como é difícil, e vos digo isso com extremo conhecimento de causa, viver de teatro num país que combate seus artistas, marginaliza seus criadores e coloca o cifrão, e só ele, como moeda de troca no front.
Cristina, Medeia moída e coada pelas obrigações cotidianas, é apenas mais uma. Até quando conseguiremos resistir? Nem Deus sabe ou imagina. Eu, ex-sonhador, hoje vencido pelo cansaço, ando fatigado de ver os expoentes de minha geração desistindo de seus sonhos em busca de uma dose violenta de qualquer reconhecimento, por menor que ele seja. Ando cansado de ver essa gente do palco se matando em corredores frios, com luzes geladas, indo e vindo numa rotina decrépita que nos obriga e engavetar projetos enquanto nos submetemos às ordens de um patrão que nos julga aventureiros pelo simples fato de tentarmos ser artistas.
Se o país de hoje nos maltrata, não é injusto ou impreciso dizer que o país de ontem, e o de anteontem, começou a nos carcar o couro desde cedo, e desde sempre. Os grandes atores de minha geração talvez estejam escondidos camelando nas baias frias de um banco, repondo produto nas prateleiras de um supermercado, chorando no escuro quando se lembram daquela coxia negra onde conseguiam sonhar acordado. Não temos um sindicato que nos representem, geralmente não temos carteira assinada ou direitos, e sempre mendigamos a pouca migalha que a sociedade nos reserva a contragosto. Em suma, somos feito terroristas: existimos nos guetos, lutamos com armas enferrujadas e existimos por pura teimosia.
O êxodo da classe artística não é um fenômeno recente. Emigramos na poeira da noite, derrotados, feito hebreus fugindo do antigo Egito e aceitando um salário fixo em troca de todos os nossos anseios. Apesar de tudo isso, e do que possa parecer, não desistimos. Como se diz popularmente, “malandro não para, dá um tempo”, e a pausa que assombra esses artistas esquecidos nesse tempo estático é uma espécie de sina que se impõe sobre nossa gente. Mas, mesmo cambaleantes, tocamos a marcha.
Mesmo que seja na base do tropeço seguimos, no entanto é preciso, e isso mais do que nunca, diante desse desgoverno fascista, uma organização que nos garanta o mínimo. Que nos garanta um sol possível no fim dessa noite turva. Até lá, até que isso aconteça, continuaremos enterrando Medeias em grãos de café e pensando o que poderia ter sido de nossa nação se acreditássemos um pouco mais nos sonhos de nosso povo em detrimento dessas imposições sociais que nos regem. Eu ainda acredito, mesmo moído e passado pelo desgosto, que há uma manhã luminosa do outro lado da ponte, e que essa manhã, nem que seja na base da porrada, ainda há de ser para todos. Quem sabe um dia ela chegue, Cristina. Quem sabe um dia.