O tempo era amanhã, ou talvez será ontem. Ou depois, ou depois, ou depois. Ou até antes. Tempo perdido na areia de si mesmo, mordendo o próprio rabo, escorrendo por um calendário imaginário que nunca figurou em parede alguma. Não importa. A luz dourada do sol bronzeava as tardes quentes de verão e justamente naqueles dias o tempo estava de folga, “pairado à beira da eternidade”.
Ouvi dizer que existem poucas histórias sobre o período. Corre à boca pequena que tudo que diz respeito, participou ou sabia algo sobre o troço teve o mesmo fim, ainda que diferente: desencarnou devido aos anos, foi assassinado ou desapareceu misteriosamente. A única certeza que se tem é a de que os dias eram cinzas. Parece que ainda são. Dizem também que os olhos das pessoas não se encontravam mais, apenas pulavam, afoitos, de brilho em brilho, de tela em tela. Tempo de solidão. E de olhos ocos, mortos, tão cinzas como os dias que escorriam pelo asfalto quente.
Era o inferno. Ainda é. Sempre será. As guerras eram comuns. Estados mastigavam pessoas, roíam seus ossos e enchiam o bucho com o pouco da carne de sua gente. Era uma tristeza só, imagine. Ainda deve ser. Deus permita que um dia mude. A frequência era sempre, o desespero constante. O placebo, portanto, cortesia do inimigo: os vícios eram tantos e tão eficientes, e as drogas conseguidas em tamanha abundância, que não havia ninguém nesse mundo escuro que pudesse erigir um músculo sequer em defesa da própria existência. Era um povo vencido, ainda que vivo.
Havia também máquinas. Máquinas de todos os tipos, máquinas para todos os gostos. Ah, às máquinas! A tara pela máquina. A perversão advinda das engrenagens. Superpotentes, onipresentes, imprescindíveis; a santa tecnologia que nos “dispensa de pensar”. Imagine só. Isso tudo onde? Aqui, acolá? Sabe-se lá. Suspeita-se, no entanto, que aconteceu no mundo, embora não se saiba em qual. A localidade é por aí; é indefinida. É lugar comum e lugar nenhum.
O cenário é o mesmo de sempre: cenário de tragédia que galopa mundo a fora pelos séculos. Dureza que teima, maltrata, insiste e, no final, sempre vence. Pois bem, nesse vácuo maldito do tempo não é de se estranhar que o teatro não fosse nada, absolutamente nada. Ninguém por ali sabia ao certo o que era aquele escombro caindo aos pedaços ao lado da matriz na principal avenida do centro. Ninguém. Pra dizer a verdade, parece que a rotina era tão dura e ressecada que tratou de transformar o antigo prédio em algo imperceptível. Não havia teatro na memória daquela gente, de modo que era como se ele nunca tivesse existido. E assim seria com o aval do tempo e o auxílio do esquecimento não fosse por um simples motivo: a chegada do Tiziu.
O cenário é o mesmo de sempre: cenário de tragédia que galopa mundo a fora pelos séculos.
O vento varria a poeira das ruas, carregando em seu lombo as folhas secas que os pedestres pisoteavam a caminho do nada A tarde passava ligeira, preguiçosa, como se estivesse enrolando por conta de moléstia ou de ressaca. Um dia chato, triste. Dia comum no reinado do horror. Dizem, apesar de não provarem, que foi Melissa, a meme, quem primeiro avistou o bicho. Era preto. Era novidade. Cantava um canto agressivo, marcado, como se tentasse alcançar o infinito através do pouco do seu sopro.
Nada. Ninguém parecia ouvir o pobre coitado. Não tinha um par, uma companhia ou fazia parte de um bando. Era um milagre alado, era o impossível. Era o último de sua espécie, que desaparecerá há tempos como todos os pássaros e tudo que é bicho. Era estranho. De certa maneira, era até nocivo. Nem Pedro, nem Melissa, nem Raíssa ou Rael deram trela pro bicho enquanto colhiam os frutos de cera sabor cereja dos “pés de quitanda” que frequentavam sempre que a fome esmurrava a barriga. Mas o Tiziu insistia, enchia o peito pequeno em despeito de toda aquela gente, que nem gente direito mais era, e soprava seu vento amargo contra tudo que é parede daquele velho teatro donde fez sua morada. Mesmo assim ninguém o ouvia. Era como se seu canto não chegasse ao tímpano daquela gente. Era impressionante.
Corre na paisagem o feno do tempo, muda-se o clima, murcham-se as flores, morrem os amores e definha a esperança. A única coisa contínua é, ou era, o esforço do pobre passarinho que parecia dedicar seus dias ao trabalho inútil de ser ouvido numa terra surda que enterrou a beleza há tempos. Feno do tempo que corre. Até que um dia, meio de repente, uma cumbia bateu no ouvido do Tiziu, que sentiu pela primeira vez, no meio daquele mundo morto, que a vida lhe respondia.
O sopro da vida vinha de longe, soando a cumbia animada, feito fosse mariposa dourada cortando o vento em direção ao pássaro solitário. Era tanta folia em seu peito, era tanta borboleta em seu estômago, que o Tiziu se viu feliz por um instante e justamente nesse momento baixou a guarda: tiro certeiro de Rael, que o descobriu sem o avistar ou ouvir. O Tiziu rodopiou no ar, perdeu o som e se estraçalhou no chão. De seu peito esburacado, a cada tremelique de sua agonia infinda, saltavam fantasmas, personagens, vultos de tudo o que o pássaro havia visto. Era entidade, poesia, verso, rezabraba, agonia, santo e diabo. Era o peito que uivava.
A cumbia, que antes soava longe, veio se achegando feito uma trupe de circo, manchando com sangue e eternizando o cheiro de morte que ainda exala de cada paralelepípedo daquele vilarejo perdido no tempo e no mundo. As cores tomaram conta do horizonte. O Tiziu parecia murcho, ressecado, e ainda tremia de febre e de susto quando saiu de seu peito rouco o último sopro.
Cada olho morto, cada íris cinza, descolou-se de tudo que é tela, voltando no tempo e na ruína de si mesmo através daquele teatro recém revivido pelo Tiziu que, ninguém sabia, guardava no bico toda a magia passarinhadeira que é preciso pra fundar um novo mundo, mesmo que esse mundo nasça da morte, mesmo que que seja inventado na base do sangue, do rodopio agonizante no ar. Mesmo que seja fruto de uma covardia.
Aquele teatro com cheiro de morte e cheio de história, a força do teatro que nasce do encanto do pássaro negro, o cantar do Tiziu que insiste em surgir na noite em claro e a lembrança de seu rodopio nunca mais deram a essa gente cinza, de olhos mortos, um minuto sequer de paz.