A 31ª edição do Festival de Curitiba foi aberta na noite desta segunda-feira, no Grande Auditório do Teatro Guaíra, com a surpreendente montagem de um dos maiores clássicos do teatro mundial: Hamlet, do bardo inglês William Shakespeare, texto escrito entre 1599 e 1601, ou, seja, há mais de quatro séculos.
A peça discute poder, mas também sanidade e adequação, ao acompanhar a jornada trágica do príncipe da Dinamarca, personagem que lhe dá título. O protagonista se digladia consigo mesmo em sua sede de vingar a morte do pai, pelas mãos do tio, Claudio, que assume o torno e se casa com Gertrudes, mãe do protagonista. Essa busca por justiça, e pela verdade, é convenientemente interpretada como loucura. Afinal, alguém insano não pode clamar pela coroa.
O espetáculo ao qual se assistiu no Guairão, contudo, não é uma versão literal, tradicional da obra-prima de Shakespeare, ainda que seja bastante fiel a seus temas centrais. Sobre o palco, viu-se a companhia peruana Teatro La Plaza, inteiramente formada por atores e atrizes com Síndrome de Down em uma adaptação original que incorpora, em um diálogo super criativo, a condição existencial do elenco.
Ao mesmo tempo em que se intercalam nos diversos papéis da peça renascentista, os integrantes da trupe são eles mesmos e discutem um outro tema, urgente e inusitado: a diversidade na excepcionalidade. Para uma plateia lotada em grande parte por espectadores neurotípicos, como eles denominam as pessoas ditas “normais”, eles se apresentam, e se mostram como indivíduos, que compartilham a mesma condição, mas estão muito distantes de serem iguais, embora pareçam assemelhados aos olhos exóticos de quem os veem de longe.
O resultado desse experimento teatral é de uma potência tão imensa, desconcertante, que o público que abarrotava o teatro compartilhava múltiplas reações, que iam da mais óbvia emoção compassiva, e confortável, ao desconcerto, à perplexidade de quem mesmo com as melhores intenções, reduz as pessoas com Síndrome de Down a expectativas estereotipadas.
O resultado desse experimento teatral é de uma potência tão imensa, desconcertante, que o público que abarrotava o teatro compartilhava múltiplas reações, que iam da mais óbvia emoção compassiva, e confortável, ao desconcerto
Embora preserve em grande medida a linha narrativa do texto original de Shakespeare, a montagem de Hamlet que tomou de assalto o Guairão – palco, plateia e balcões – é mais, muito mais enquanto experiência estética. Discute as limitações enfrentadas no dia a dia pelo elenco, como preconceitos, discriminação e a maior vulnerabilidade física. E também contempla os desafios de estar em cena, como memorizar um texto tão complexo, passar por cima das dificuldades fonéticas impostas pela escrita do autor inglês.
Há momentos hilários, como a entrevista que um dos atores que vive o personagem-título faz com o ator britânico Ian McKellen, presente em cena sob a forma de vídeo num telão. Mas também estão lá fortes emoções, a exemplo do diálogo amoroso, sobre o palco e nos camarins, entre Hamlet e sua prometida Ofélia, ambos pessoas com Síndrome de Down, a respeito da viabilidade de um amor entre indivíduos marginais como eles.
Um dos pontos altos do espetáculo é quando todo elenco, entrelaçando elementos do texto original e aspectos de suas vidas na dita “vida real”, cantam e dançam um rap que é pura contemporaneidade. É gigantesca a potência desses corpos que atravessam textos, contextos e saltam do palco para nos agarrar pelos olhos, ouvidos e gargantas, a dizer: “Nos ouçam, nós existimos e estamos aqui, na sua frente!”. É quando o teatro, como forma de expressão artística presencial, opera seus milagres e arrebata, se tornando político em sua essência.
Prefeitura de Curitiba
Antes da apresentação de Hamlet, em cerimônia conduzida com verve e humor cortante pela atriz paulista Marisa Orth, um dos diretores e criadores do Festival de Curitiba, Leandro Knopholz, agradeceu os muitos patrocinadores do evento, mas não sem antes mandar um recado direto para o prefeito da capital paranaense, Rafael Greca de Macedo, que, em suas palavras, se recusou nos últimos sete anos a dar qualquer tipo de apoio ao festival, que além de ser um dos mais importantes do país, gera riqueza e cultura à cidade, a colocando em movimento nos mais diversos sentidos.
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