Fazer teatro é um ato de resistência, uma liberdade que descobrimos dentro da gente. Por entre leituras e encenações, vamos conciliando nosso ser a inúmeras vivências que acontecem no mundo durante o processo de criação de nossa arte, vamos descobrindo um meio a partir do interno de nossos pensamentos e atuações. A sala de ensaio, os encontros, o espaço de construção, a relação de outro mundo fora da realidade, o interpretar e todas as formas de imaginações cênicas conduzem à experiência de outro lugar. A possibilidade de criação em grupo é infinita perante o espaço, tudo é real, figura imaginativa composta de matéria, pessoas, pensamentos conjunto que fazem a historia acontecer. A relação é humana, o devaneio conduz a criação desse mundo ficcional.
Imaginar, sonhar, inventar, errar, conhecer, aprender, ensinar, compreender, ouvir, falar, se expandir, voar até o limite do teto, permanecer estável no alto, ser uma poeira planando no espaço da projeção da luz. A sala de ensaio é o espaço onde todos se envolvem para conhecer esse universo teatral. Ao entrar em seu território, é necessário se jogar de acordo com a vontade de querer criar e modificar a interpretação se ausentando de si. O atuante deve desenhar o pensamento e compartilhar com o grupo as pequenas ideias que apresentam a interpretação do mundo, nos devaneios entregues à sala preta carregada de vida, de olhares íntimos e de múltiplas fontes de histórias.
Para acompanhar essa interpretação, Gaston Bachelard comenta sobre esse processo de criação no livro A poética do devaneio (Editora Martins Fontes, 2009): “para analisar o nosso ser na hierarquia de uma ontologia, para psicanalisar o nosso inconsciente enterrado em moradas primitivas, é preciso à margem da psicanálise normal, dessocializar nossas grandes lembranças e atingir o plano dos devaneios que vivenciávamos nos espaços de nossas solidões”.
Cada atuante deve ser um risco no meio de um ponto que se conecta a outros pontos que se aglomeram como as raízes de uma árvore que dão forma a essa encenação.
Em um grupo, devemos analisar nosso processo em cada ponto, apresentar as lembranças das solidões gravadas na memória. Junto ao coletivo, vamos alimentando a descoberta de outros pensamentos, de imaginações de autores, da troca com os atores, diretores e de quem transitar pelo espaço contribuindo no surgimento da obra. O atuante deve entregar o que ele carrega em seu esconderijo íntimo para compor o som que lhe leve a outra parte do seu ser, de outra vida dilatada em palavras trocando a imprecisão por devaneios que venham a surgir. Cada atuante deve ser um risco no meio de um ponto que se conecta a outros pontos que se aglomeram como as raízes de uma árvore que dão forma a essa encenação.
Nessa condição, o grupo constrói um elo que liga os pensamentos de suas representações para um equilíbrio da noção do que vai surgindo. Bachelard ressalta ainda: “fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído do ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é circuito, tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é rosário de permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim”.
Tudo se dá a partir do que o grupo mostra durante os ensaios, das histórias inventadas de cada atuante nesse círculo. A convivência trafega nas linhas da sintonia, no vasto campo teatral e na experiência de vivenciar um processo de construção cênica. Durante o encontro vamos quebrando o espaço-tempo do cotidiano e nos ausentando do mundo, multiplicamos a ideia que aguça no interno para o externo dentro da sala de ensaio, mudamos com o novo, com o outro que apresenta o material que faz a dinâmica funcionar. Nesse círculo, é preciso marcar foco e caminhar pelo espaço ao encontro do sentindo que faz a história acontecer. Toda percepção é válida para o andamento do processo, para o enriquecimento de nossa bagagem artística e outra partitura corporal que reinventa nossos sentidos de vida e redescoberta de nossos conhecimentos.