Lembro-me exatamente da primeira vez que vi o saudoso prédio do Teatro de Arena, que hoje atende pelo nome de Sala Experimental Eugênio Kusnet. Eu era um garoto de Campinas, atordoado pela beleza cinza da capital do estado. Já havia assistido alguns espetáculos em São Paulo, no entanto, há pouco tinha decidido a me aventurar pelas terras da desvairada Paulicéia, a mesma que anos atrás comoveu e serviu de inspiração ao poeta Mario de Andrade, esse sim, um de nossos gigantes.
Tinha ao meu lado um grande amigo, o maior daquela época, e nós derrubávamos ampolas enquanto levantávamos sonhos possíveis em um botequim no Bixiga. Ele, um trotskista libertário que vivia sob os mandamentos de André Breton. Eu, um ator de teatro recém-formado, tomado de incertezas, mas dono de uma coragem que hoje faz falta a este adulto amargo que vos escreve. Entre lágrimas e gargalhadas, declamamos versos de Oswald de Andrade e juramos amor eterno, selando nossa parceria perene com um brinde.
Resolvemos, naquele tom solene que só as maiores bebedeiras nos proporcionam, deixar uma espécie de oferenda na porta do Teatro de Arena. Ele sacou de alguns versos escritos naquela tarde, eu tinha um exemplar de Paranóia, do querido Roberto Piva. Estava decidido: deixaríamos na porta do Arena aquele presente aos deuses que governam nossos desgovernos, a fim da benção daqueles que eram também motivo de nossa insistente jornada pelos caminhos da luta cultural. Impossível descrever o sentimento que me tomou de assalto ao enxergar, debaixo de uma leve garoa, o histórico prédio do teatro. Entre punhos levantados em riste e versos declamados, abracei o amigo como quem, diante de um lugar sagrado, abraça seu povo. Naquele instante, eu não estava somente atrelado ao meu corpulento companheiro de viagem, o Brasil inteiro cabia naquele abraço.
Impossível descrever o sentimento que me tomou de assalto ao enxergar, debaixo de uma leve garoa, o histórico prédio do teatro.
Depois daquilo, nos dirigimos para o Terminal Rodoviário do Tiête. Embarcávamos para Campinas com a certeza de que, muito em breve, São Paulo se renderia a nossa revolução. A verdade é que subjulgamos a musa poderosa de tantos poetas imprescindíveis. Fomos, cada um à sua maneira, trilhar sim nossos caminhos naquela terra. No entanto, fomos nós que, ajoelhados, morremos de amor pelas esquinas torturantes de nossa São Paulo, dona de todo amor e todo ódio, como as moças mais complicadas que a habitam.
Daquela amizade restou o gosto amargo da decepção na garganta, e a certeza de que o ser humano é, quase sempre, uma perda de tempo. Daquela tarde ainda guardo alguns versos, que hoje olho com absoluto desdém, além de uma foto embaçada do túmulo de Oswald de Andrade, tirada de maneira analógica, acreditem. De todas as certezas que carregava naquele instante, a única que ainda sobrevive em meu peito é a de que, a cada ano que passa, a história do Arena e de seus integrantes me toca cada vez mais.
Fundado nos anos 1950, na cidade de São Paulo, o Teatro de Arena disseminou a dramaturgia nacional, encenando textos escritos por seus integrantes, marcados por um teatro político e social. O nome do grupo surge do contato de seu fundador, José Renato, com Décio de Almeida Prado, outro gigante de nossos palcos. No 1º Congresso Brasileiro de Teatro, no ano de 1951, Décio defendeu o barateamento da produção teatral através do uso de uma Arena para encenação. O formato de Arena, segundo o teatrólogo, desobriga o uso de grandes cenários. Valoriza-se, dessa forma, os figurinos e, principalmente, a interpretação.
José Renato colocou a ideia do professor em prática no espetáculo O Demorado Adeus, ainda enquanto estudante da Escola de Arte Dramática. A EAD tem papel fundamental no início do grupo, que surge a partir das atividades do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e da própria EAD. Muito já foi escrito sobre a importância do Arena para o teatro brasileiro. Destacar por aqui os atores que por lá passaram e sua relevância para a nossa história seria, como dizem os mais antigos por essas bandas, como chover no molhado.
A grande contribuição do Arena, na minha opinião, vai muito além de seus ilustres participantes ou do sucesso de suas peças memoráveis. Teatros com trabalhos merecidamente exaltados existem aos montes por aí. É sempre possível assistir a bons espetáculos quando se está em uma cidade como São Paulo. No entanto, a coragem de assumir suas crenças e levantar bandeiras que ainda hoje causam certa resistência ainda é novidade para os grupos atuais, e faz com que o Arena seja eternamente moderno.
Ele fez da opção política sua estética. Da encenação de Eles não Usam Black-tie – excelente texto de Giarfrancesco Guarnieri – em diante, acompanhamos um grupo com ideias sólidas a respeito do ser humano e do mundo que o cerca. A luta do Teatro de Arena é uma luta contínua pela libertação do homem em todos os sentidos. Espetáculos consagrados, como o caso de Arena Conta Zumbi, levavam consciência política e respostas a proletários explorados, cansados do massacre cotidiano do capital. Através de figuras emblemáticas como Augusto Boal, Guarnieri, Vianinha e o próprio José Renato, o Arena representou o início de um teatro de lutas no Brasil, algo imprescindível diante do terror que se anunciava através da figura de velhos generais.
Vivemos tempos em que a covardia, ou a canalhice, emana dos poros opulentos de nossa sociedade. Há, portanto, de reverenciarmos a história deste gigante teatral.