Nuno Ramos, na apresentação de seu livro Ensaio Geral, faz a seguinte colocação:
“Para quem produz cultura no Brasil, há sempre, de um lado, as tentações da ausência de especialização, um sentimento de que tudo ainda está por ser feito, responsável pelo entusiasmo presente em algumas de nossas figuras intelectuais e em alguns de nossos momentos culturais decisivos. De outro, há um cansaço complementar e renitente, devido à inconclusão e impermanência de tudo e todos, um sentimento de que a pedra que arrastamos não descansará jamais no alto da montanha. Como nada se fixa de todo e nenhuma conquista consegue enraizar-se, parece que estamos condenados a um eterno presente curiosamente intransitivo, voltado para si mesmo, descolado do que veio antes e do que deveria vir depois.”
O autor-multiartista, refere-se a um complexo contexto artístico e suas palavras podem ser utilizadas para iluminar centenas de discussões de maneira mais abrangente e também de modo específico e pontual. Aqui, esse trecho, servirá para a composição de alguns pontos de uma breve análise sobre Qorpo Santo. O motivo do texto é o espetáculo Amanhã Sou Outro (ou a arte de tudo quebrar e nada endireitar), que estreou no Festival de Curitiba, na mostra Novos Repertórios, e está em cartaz até o dia 03 de maio, no Teatro José Maria Santos, e que integra o projeto Qorpo Santo – Três Linguagens.
A ideia de tempo e de enraizamento, presentes no texto de Nuno Ramos, são interessantes para se pensar a trajetória e a vida de Qorpo Santo. Joaquim de Campos Leão, nasceu no Rio Grande do Sul, na cidade de Triunfo, em 1829, e além de dramaturgo foi comerciante, delegado, professor e vereador – talvez por isso, pela quantidade de papéis sociais, é que Qorpo Santo soube ficcionalizar com destreza a sociedade e seu funcionamento: um observador atento que não hesitou em revelar as contradições sociais.
Ainda que de uma lucidez impressionante – a ponto de ser cruelmente atual – a maior parte de sua produção teatral foi feita depois de 1864, ano em que foi pela primeira vez internado por conta de alucinações. Isso não o impediu de escrever em diferentes formatos com distintas finalidades. Mas Qorpo Santo morreu como louco, esquecido social e historicamente. A distância entre o público e a produção do autor resultou em um desconhecimento quase total sobre o dramaturgo. O acesso aconteceu, basicamente, por esforços de acadêmicos do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, responsáveis pela reunião e difusão dos textos, praticamente inéditos até a década de 1950. Foi só a partir da década de 1960 que os escritos se tornaram conhecidos e que surgiram as primeiras montagens com os textos do autor.
Qorpo Santo, então, passou a constar ao lado de autores como Fernando Arrabal, Samuel Beckett e Eugène Ionesco, considerado como um dos componentes do chamado Teatro do Absurdo – nomenclatura criada por Martin Esslin para designar a produção, especialmente dramatúrgica, em um contexto de pós- Segunda Guerra Mundial, cujos temas se referem à condição humana e abordam, entre tantas coisas, a descrença, a incomunicabilidade e a solidão, enfatizando aspectos inusitados e inesperados da vida. Há, ainda, aproximações do autor com o surrealismo, movimento também com origem europeia. É inegável, no entanto, o caráter inventivo e vanguardista do autor, que tomou proporções máximas quando, por exemplo, decidiu propor uma reforma ortográfica que se fundamentava na oralidade e na pronúncia das palavras – vide o caso do próprio nome: corpo é “qorpo”.
![Rubia Romani, Débora Vecchi, Cleydson Nascimento e Jeff Bastos em cena de "Amanhã Sou Outro (ou a arte de tudo quebrar e nada endireitar)" Autor: Fabiano Rosas Rocha.](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2015/04/11134124_890954244311737_7143167418183323063_o-1024x683.jpg)
Qorpo Santo morreu como louco, esquecido social e historicamente. A distância entre o público e a produção do autor resultou em um desconhecimento quase total sobre o dramaturgo.
Projetos envolvendo o uso de Qorpo Santo sempre parecem se atentar para uma espécie de dívida que a história e a arte tem com o autor – lhe foi negado o tempo e a possibilidade de enraizamento em uma cronologia do teatro ou da literatura brasileira, assim como não foi possível cogitar a permanência e a conclusão. Parece sempre haver o desejo de que um equívoco seja desfeito, especialmente ao se perceber que autores como José de Alencar e Martins Pena, que produziam na mesma época, foram generosamente lidos e reconhecidos. As especificidades de Qorpo Santo, que, definitivamente, não produzia “descolado do que veio antes e do que deveria vir depois”, não puderam ser fixadas e, com certa frequência, há tentativas tardias de legitimar a importância (e a existência!) do autor.
O espetáculo Amanhã Sou Outro (ou a arte de tudo quebrar e nada endireitar) faz parte de um projeto que, além da peça, contempla a produção de uma trilha sonora e de três videoclipes inseridos no universo de Qorpo Santo. As diferentes linguagem usadas apontam para a necessidade de difusão do autor – também promovendo um movimento interessante de atualização em níveis e intensidades diferentes. Antes mesmo de se atentar à peça, a escolha da realização de uma trilha sonora e da feitura de videoclipes (ainda que os tempos áureos destes pareçam ter sido as décadas de 1980 e 1990, é, inegavelmente, o YouTube a ferramenta mais usada para divulga-los), parece enfatizar os esforços para tornar discursos com mais de 100 anos produções do tempo presente.
Em relação a peça, especificamente, também me atento a questão da atualização. Qorpo Santo e o seu material, cujas características remetem com bastante intensidade à crônica (formato que apresenta certa facilidade em permanecer datado), surgem em cenas absolutamente atuais – com um potencial reflexivo e crítico dotado de um imediatismo que parece não condizer com o século de distância entre o dramaturgo e a montagem. É um processo que se tornou bastante comum em montagens de textos “clássicos”, por exemplo, fazer com que uma realidade absolutamente distinta encaixe-se em um contexto outro, revelando uma porção de similaridades e proximidades entre indivíduos e meios tão distanciados. Mas não se trata disso – exatamente porque não há, em relação direta, um autor cuja trajetória se assemelhe a de Qorpo Santo. A peça consegue, seja em um quadro de um programa de televisão, seja em uma briga que expõe a relação entre a violência e a homossexualidade, atribuir um significado muito próximo fazendo com que a distinção temporal, quando não inexistente, escusada.