Como toda arte, o teatro também possui histórias anônimas. São pequenos causos, acontecimentos quase sem importância, que não têm fôlego ou pernas para alcançar o rabo da história e que mal ultrapassam os limites dos muros onde ocorrem. A maioria delas tem vida curta. Vivem feito hospedeiro na boca alheia por um tempo e depois desaparecem na espuma dos dias. Mas algumas poucas, pouquíssimas eu diria, sobrevivem mesmo sem motivos. E, de tempos em tempos, merecem ser contadas quando o tempo nos permite uma fuga ou a cuca nos exige uma folga.
Pois bem. Tão insignificante quanto essa história era o alemão, personagem principal do troço que passo e lhes contar a partir de agora. Quem me contou o causo foi Rubens Teixeira, um professor de interpretação cujo o maior talento era a fala mansa e a disposição para relembrar tudo, até o que não havia vivido. Rubão, apelido óbvio do corpulento mestre, era movido pelas histórias que contava. O velho de barbas e cabelos brancos era uma máquina de contos e causos, de modo que a veracidade de suas histórias perde a importância diante do sacerdócio da coisa. O passado, além de uma ferramenta de ensino, era o combustível da vida do cabra. Sorte de seus alunos.
O “Fritz comedor de chucrute”, era assim que Rubão sempre começava a história e, em todas as vezes que a ouvi, essa foi a única coisa inalterada, chamava-se na verdade Klaus. Era alemão, “sabe-se lá de onde”, e havia caído no meio do Rio de Janeiro décadas atrás, ainda menino, acompanhando os pais. Entrou no teatro por acaso, “para aprender o português que nunca falou”, mesmo motivo pelo qual devorava livros “mesmo sem entender porra nenhuma”, dizia o nosso catedrático dramático enquanto emendava uma risada engazopada.
Para a turma do teatro, sempre dada a brincadeiras e esquisitices, Klaus virou Claudio e logo se mostrou um dos mais aplicados às artes do palco. Decorava os textos antes de todos, com uma facilidade impressionante. O corpo esguio, tendendo ao magro, e a famosa disciplina alemã faziam de Cláudio, o Klaus, um ator/atleta invejável, e a sua pele, quase rosácea de tão pálida, o tornava uma figura interessante, ainda mais para os padrões cariocas. Em pouco tempo, teatro e Cláudio tornaram-se uma coisa só, esqueceram de vez o antigo Klaus, e deu-se o casamento fruto do acaso que a tudo superou, até mesmo os empecilhos da fala.
Rubão chega na história anos depois. Cláudio já é um ator respeitável, ele apenas um garoto “que chacoalhava de trem em trem entre o trabalho e os ensaios sem saber ao certo pra onde ir”. Recém-chegado no grupo sediado próximo à Central do Brasil, tinha o alemão como diretor, além de preparador vocal e corporal. A peça: uma adaptação de Assombrações do Recife Velho. O velho descrevia o trabalho como dificílimo, e a memória parecia trazer à sua voz o cansaço da época dos ensaios sempre que nos contava sobre a personalidade exigente e quieta do alemão. Eram ensaios exaustivos, com duração mínima de oito horas, onde o diretor pouco falava. O silêncio só era rompido para efetuar pequenas correções.
A “falta de retorno” que assustava o rapaz recém-chegado parecia não encucar nenhum dos outros atores, mas isso era óbvio, afinal “era eu quem tinha a obrigação de mostrar serviço, porra”. E a coisa só piorava. Com o passar do tempo, o silêncio parecia ser rompido sempre com o mesmo propósito: corrigir o novato. Os olhos do diretor, antes perdidos pelo cenário, pareciam agora fuzilar o pequeno Ruben, como o gringo o chamava. As referências saiam de sua boca e pareciam rasgar os tímpanos do ator nascente: Gilberto Freyre, Stanislavski e, é claro, Brecht.
Ao mesmo tempo em que se encantava, o pequeno Ruben também se irritava. Não havia um único elogio quando ia bem, mas sabia quando o fazia. Era sempre a mesma coisa: explicação, exigência, correção. Se essa era a tal disciplina alemã, ele queria era distância da coisa. Ficou feliz em saber por outro colega que estava certo para o próximo projeto do grupo, que começava a ser pensado, e os ensaios começariam ainda durante a temporada do Assombrações e, nos admitia anos depois, muito dessa felicidade se deu por saber que o alemão não estava envolvido em absolutamente nada no projeto além de atuação, seria um colega de cena e nada mais.
São pequenas histórias, tão desimportantes como essa, mas que de alguma maneira encantam e permanecem vivas pulando de boca em boca, inclusive as bocas de cena.
Os ensaio seguintes seguiram seu rito e sua previsibilidade. O alemão aos poucos mostrou-se um gênio, é bem verdade, mas sua genialidade não bastava para vencer a implicância de Rubão, essa “já estava pelas tampas, a ponto de explodir”. E explodiu, a três dias da estreia, num ensaio que começou no meio da tarde e já se preparava para alcançar a madrugada. A cena era a respeito da Casa de Imbiribeira, e o policial com poucas falas foi corrigido diversas vezes, até chegar ao ponto do ator não aguentar mais, dar um showzinho, especialidade de muitos atores ainda hoje, e rumar pra casa com a promessa de abandonar a produção naquele momento “e fodam-se vocês seja em português ou em alemão”. Pano.
No dia seguinte, um envergonhado ator voltou ao teatro não para se desculpar, mas para pegar suas coisas e ouvir, tinha absoluta certeza, a notícia de que estava fora do grupo. Nada. Tomou uma pequena bronca pelo atraso, de um colega e não do diretor, vestiu seu figurino e ensaiou normalmente. Durante todo o ato só pensava em como se dirigiria ao diretor, o que diria ou se era melhor esquecer tudo aquilo e continuar fingido que nada aconteceu, mesmo que parecesse ridículo. Não conseguiu. Tão logo o fim do ensaio foi anunciado, o ator, agora em absoluta humildade, se dirigiu ao diretor e pediu para conversarem, no que foi consentido imediatamente.
Dirigiram-se à sala de produção, no prédio não havia nenhum camarim, e ali o pequeno Ruben foi todo desculpas. O alemão ouviu tudo sem mover um músculo, como de costume. Ao fim, pediu ao ator que chegasse no horário no dia seguinte e sugeriu alguns trejeitos para o delegado na cena em que comentava os barulhos de louça se quebrando. Silêncio, como sempre. No dia da estreia, já parado em sua marca, no palco, “com nariz roçando o veludo da cortina”, Rubão sentiu uma mão pousar-lhe no ombro. Ele não olhou pra trás. Sentiu que a mão era a mão do alemão, e que a quentura de sua palma pousada no seu ombro segundos antes da estreia tinha o peso de mais de mil palavras.
Esse é um causo de palco, um dos tantos que existem e que, se houver tempo para desenferrujar a lembrança, colocarei aqui vez ou outra. São pequenas histórias, tão desimportantes como essa, mas que de alguma maneira encantam e permanecem vivas pulando de boca em boca, inclusive as bocas de cena.