Há exato um mês, A Força do Querer estreou como faixa das nove da Rede Globo e desde então podemos considerar que a novela está indo muito bem. A trama é envolvente, inovadora e quase não carrega características da fórmula carimbada das histórias apresentadas no horário nobre. Claro que muito do DNA de Glória Perez está lá, mas em sua nova obra a escritora traz vários novos elementos ao texto, e são estes elementos que têm feito toda a diferença.
A autora é conhecida (e criticada) por sempre apresentar um núcleo de um país e cultura diferente. Em A Força do Querer, esse padrão foi quebrado e ela nos mostrou a cultura do Pará, no norte do Brasil. Outra novidade imprimida ao folhetim tradicional é que, até agora, não conseguimos definir quem são os protagonistas e os antagonistas, pois todos os personagens apresentam traços positivos e negativos em sua personalidade.
Mas a principal mudança é que Gloria Perez, que é uma criadora de grandes heroínas que lideram o enredo – como a Jade (Giovanna Antonelli) de O Clone, a Maya (Juliana Paes) de O Caminho das Índias e a Morena (Nanda Costa) de Salve Jorge –, aposta num mosaico de tramas, costuradas por papeis femininos fortes que não carregam características de mocinhas tradicionais, tornando-se figuras quase controversas.
Ritinha, personagem de Isis Valverde, é uma jovem adepta ao sereismo que adora sentir o fascínio que exerce sobre os homens (assim como as sereias). Ela vive um triângulo amoroso típico, porém, é dona de uma personalidade bastante peculiar, que não combina muito com mocinhas “corretas”. Ela sente-se tentada a viver novos horizontes e esta vontade a leva a ser excessivamente impulsiva.
Enquanto isso, Bibi, vivida por Juliana Paes, defende sua crença no amor e só o entende se vivido com demonstrações intensas de paixão. Até aqui ela parece a mais tradicional dentre as mocinhas, mas sabe-se que ela irá se tornar uma poderosa bandida. O personagem é inspirado na empresária Fabiana Escobar (leia aqui), conhecida como Bibi Perigosa, a Baronesa do Pó.
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Já Jeiza, interpretada por Paolla Oliveira, traz um traço destoante da típica mocinha: ela é uma policial que preza muito pela profissão, colocando seu trabalho acima de relacionamentos amorosos. Além disso, Jeiza sonha em se tornar lutadora de MMA e ergue a bandeira que mulher pode ser e fazer o que quiser.
E não podemos deixar de mencionar a personagem sensacional vivida por Carol Duarte, que estreia como atriz televisiva como Ivana, uma jovem que nasceu mulher, mas não se sente confortável no próprio corpo e vai acabar se revelando homem trans. Ela provavelmente causará um grande conflito familiar ao querer resgatar sua identidade e, com isso, trará para fora das telas discussões sobre diversidade e as dificuldades de compreender e aceitar as diferenças.
Porém, se temos papeis femininos fortes e polêmicos, o núcleo masculino apresenta personagens machistas e conservadores.
No grupo principal, temos Marcos Pigossi como Zeca, um caminhoneiro rude e orgulhoso que fala coisas como “mulher minha quem defende sou eu”, “se fosse minha mulher não fazia essas coisas”, “mulher não é feita para brigar’’ e “é de alfenim que nem qualquer mulher”. Também há Ruy, interpretado pelo deslocado Fiuk, que joga a culpa de sua infidelidade em Ritinha, nas circunstâncias, no acaso, enfim, em tudo, menos em si mesmo e na sua capacidade de escolha.
Saindo do núcleo principal, temos Abel, o pai de Zeca, vivido por Tonico Pereira, que não mede palavras para falar o que pensa e julgar Edinalva (Zezé Polessa). Dantas (Edson Celulari) tenta convencer sua filha Cibele, papel de Bruna Linzmeyer, a perdoar o deslize de seu noivo Ruy com o velho discurso que traição masculina é normal e diferente da feminina, porque não envolve sentimentos. E ainda temos o personagem de Humberto Martins, o Eurico, que demonstra ser um marido controlador e um homem com extrema dificuldade para lidar com as diferenças, dando declarações do tipo “não gosto desse papo de o mundo mudou”, “o mundo precisa de regras” e “o que foge do tradicional é aberração”.
É difícil acreditar que eles sejam assim por condizerem com o pensamento da autora. O mais plausível é que esses homens ajam e falem estas coisas justamente para causar repulsa.
Entretanto, apesar da impressão negativa que é passada, é difícil acreditar que eles sejam assim por condizerem com o pensamento da autora, ainda mais ela nos apresentando os personagens femininos que apresenta e trazendo os temas que traz para debate. O mais plausível é que esses homens ajam e falem estas coisas justamente para causar repulsa. O próprio Pigossi já disse que interpreta um machista que é exemplo de como não agir (leia aqui).
Algumas cenas já dão a entender que a novela mostrará transformações no comportamento destes personagens. Zeca se envolve com a empoderada Jeiza, que já demonstra indignação com algumas de suas falas e discute com ele sobre isso. Outra dica sutil é que as cenas de romance do casal são embaladas pela música “Se você pensa”, na versão da cantora Pitty.
Cibele, ao ouvir a justificativa do seu pai levanta indignada e diz que “vai fingir que ele não foi um completo imbecil machista”. E Eurico está no mesmo núcleo de atores que levantam a bandeira da tolerância: é tio de Ivana (personagem trans) e seu motorista Nonato (vivido pelo ator Silvero Pereira) é na verdade um travesti que se apresenta como Elis Miranda.
Agora só nos resta acompanhar os próximos capítulos para ver se a trama continuará apostando no enredo inovador e analisar a maneira como as atitudes desses personagens serão tratadas, se haverá uma real mudança de comportamento e o modo que isso acontecerá. Afinal, a novela tem tudo para agradar, mas também pode se estragar caso não seja direcionada da maneira correta e com o cuidado que os temas abordados exigem.