Uma viatura da polícia trafega pelas ruas noturnas de São Paulo, capital paulista. No banco da frente, um policial fardado fala ao rádio com a central, que passa a ocorrência: briga entre irmãos. A câmera na mão do cinegrafista treme, tamanha a velocidade assumida pelo veículo da Polícia Militar de São Paulo, que passa a rasgar as vielas rumo a um bairro da periferia da capital. Uma legenda amarela na tela é encarregada de deixar claro os diálogos que se seguem, seja entre os políciais que estão na viatura, seja entre eles e o COPOM (sigla para Central de Operações da Polícia Militar), ou seja com a equipe de produção responsável pelo programa Polícia 24h, exibido às quintas-feiras desde 2010 na grade da emissora, e legendas brancas explicam as terminologias típicas do trabalho policial.
Chegando ao local, o soldado da PMESP desce e procura pela pessoa responsável pelo chamado. A ocorrência trata da briga entre dois irmãos. Um deles, o mais velho, estava bêbado e, por isso, “dando trabalho” ao mais novo. Após uma discussão ríspida, um deles desferiu alguns socos no rosto do outro. Desta forma, o chamado à Polícia Militar é feito pelo irmão agredido. Educadamente, o policial solicita a permissão do proprietário do imóvel para adentrar a residência e procura mediar o conflito entre os envolvidos. Não vemos o rosto de nenhum deles, pois as faces estão desfocadas, num típico recurso do jornalismo para proteger a identidade das fontes. Pausada e tranquilamente, o soldado informa sobre as burocracias oriundas da continuidade do imbróglio caso ambos sejam levados à delegacia. O mais novo recua. O mais velho pede desculpas, ainda que faça constantes piadas à câmera, demonstrando a visível embriaguez. Para boa parte da população, incluída a de baixa renda, dizer que esta transcrição é de uma ocorrência policial seria motivo de riso – ou choro e indignação.
Parte dessa sequência é guiada por um produtor que nunca aparece em cena, mas de quem, vez ou outra, ouvimos a voz, geralmente fazendo perguntas que acrescentam comicidade ao programa. “Você bebeu?”; “Vai dar um abraço no seu irmão?”; “Ele sempre fala com as amantes perto de você?”. Junta-se a isso a edição feita pela Band, utilizando sons e outros efeitos que aproximam a narrativa de esquetes do Pânico na Band – o reality, aliás, é campeão na geração de memes nas redes sociais durante sua exibição. Assistir ao reality show da emissora cria um certo nó na cabeça de quem está acostumado às coberturas jornalísticas com tom policialesco – incluídas aí a de programas do próprio canal, como Brasil Urgente –, como se ele estivesse se esforçando em criar uma realidade utópica na qual o trabalho exercido pela PM, atores da vida real, sem maquiagem e sem recorrer à ficção, fosse um exercício diário de superação. O programa não esconde: os policiais são os protagonistas.
Por trás da lógica apresentada pelo reality – da qual alguns fatores são inegáveis, ainda que não apresentados (o policial militar é mal remunerado; trabalha em condições precárias e estressantes; lida com situações extremas; sofre com o grande número de trotes e pequenas ocorrências “bobas”) –, se escondem dados mais cruéis, que apontam a uma “verdade” (em aspas por representar apenas um recorte do todo) que não interessa ao show: a Polícia Militar, como apontado pelo “5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil”, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, matou entre 1993 e 2011 ao menos 22,5 mil pessoas em confrontos, quase três ao dia. Para um Estado em que a pena de morte não é prevista em sua legislação, este é um número elevado. Além disso, os casos de abuso policial se acumulam, demonstrando que existe no país uma cultura da violência institucionalizada.
Assistir ao reality show da emissora cria um certo nó na cabeça de quem está acostumado às coberturas jornalísticas com tom policialesco, como se ele estivesse se esforçando em criar uma realidade utópica. O programa não esconde: os policiais são os protagonistas.
O Polícia 24h é produzido seguindo muitos elementos estéticos e narrativos oriundos do cinema, alguns com origem em movimentos cinematográficos mais recentes, como o “Dogma 95”. Veja que a câmera está sempre à mão do cinegrafista; não se usam acessórios ou cenografia; não se utiliza iluminação especial (salvo uma única utilizada pela própria câmera); não utiliza filtros; raramente a cena é cortada (os planos sequência são constantes). O “Manifesto Dogma 95” visava o resgate do cinema, em que diminuísse o uso de técnicas e tecnologias em favor de um cinema mais realista, e é nisso que o Polícia 24h procura tangenciar o reality ao dizer que nele estão registros fieis do trabalho das corporações espalhadas pelo país.
Vale ressaltar, ainda, que a narrativa é construída de maneira a dar um tom cômico ao programa, como se um de seus propósitos fosse desconstruir a narrativa da polícia que mata e ressignificá-la como a que enfrenta um cotidiano difícil e permeado de pequenas bobagens, os bons companheiros da comunidade, alguém sempre disposto a ser o mediador de conflitos, prezando em primeiro e único lugar a paz e o atendimento às leis.
Enquanto reality show, Polícia 24h cumpre seu papel de entreter a partir do recorte escolhido e trabalhado para ser apresentado ao espectador. Entretanto, ficam as perguntas: o quanto esse “real” é, de fato, “a vida como ela é”? A quem interessa essa ressignificação do agente policial como um “companheiro da comunidade”? Não poderia ser esse riso uma construção de humor crítica ao cotidiano e à ação da própria polícia? Estamos, pois, preparados para ver os bastidores da segurança pública?