É bem comum notar que os meios de comunicação de massa costumam se pautar mutuamente. Se um tema é abordado por uma emissora, é bastante provável que ele passe a ser abordado também por uma concorrente ao mesmo tempo. Este fenômeno ajuda a explicar, por exemplo, por que certos assuntos permanecem na invisibilidade e, quando vem à tona, é como se todo mundo estivesse falando das mesmas coisas ao mesmo tempo.
Nas últimas semanas, é inegável que houve uma grande pauta que ocupou todos os noticiários, baseados em acontecimentos tenebrosos, que sempre existiram, mas que parece que “brotaram” ao mesmo tempo na mídia. Falo dos casos de feminicídio – de crimes cometidos contra mulheres – que horrorizaram a população.
Como disse, as mulheres, desde sempre, foram vítimas de violências diversas (e recentemente a obra Garotas Mortas, da argentina Selva Almada, evidenciou o quão pouco parece valer a vida de uma mulher), mas não seria errado argumentar que parece que há pouco tempo as programações jornalísticas tomaram esse assunto para si. É claro que o tema não surgiu por nada: certamente, o agendamento do tema na mídia – e a coragem para falar disso – vem colado às pautas feministas, que passaram a reivindicar espaço para as vozes e para os olhares das mulheres.
Por isso o espanto ao vermos nos telejornais, nas últimas semanas, tantos casos de mulheres assassinadas por companheiros – trazendo uma sensação de que houve um aumento nessas mortes. O que não é necessariamente verdade: talvez simplesmente as emissoras tenham resolvido pautar isso agora. (Eu ainda provocaria: é provável que a “novidade” esteja no ato de se noticiar a morte de várias mulheres de classe média, com ensino superior, “bem resolvidas”; a morte violenta de mulheres de classes baixas sempre esteve presente, sem grandes alardes, no jornalismo policial popularesco).
A verdade é que ninguém sabe muito bem como falar sobre violência, e mais especificamente sobre este tipo. Por isso mesmo, ficou evidente a abordagem rasa dos veículos de comunicação, em tom imperativo, do pragmatismo do ‘como agir’.
E quando não há uma expertise na abordagem de certo assunto, é até esperado que haja alguns equívocos na forma pela qual este tema será traduzido ao público. O caso mais repercutido nessas semanas provavelmente foi o assassinato da advogada Tatiane Spitzner, em Guarapuava (PR), encontrada morta após cair do quarto andar de um prédio. Houve ali todo uma configuração detetivesca, constituída por pistas que montavam uma espécie de jogo: Tatiane teria sido atirada ou, num surto, teria se jogado do prédio, como argumentava seu marido, e como deu a entender o depoimento de uma testemunha?
Eis que o mistério do “jogo” foi desvendado: após alguns dias, imagens provindas de câmeras de segurança mostraram o registro de cenas em que Luis Felipe Manvalier, marido de Tatiane, agredia a esposa e limpava seu sangue do elevador. Foi o suficiente para que as emissoras diversas passassem a reproduzir, incessantemente, as imagens dos últimos momentos da vida dessa mulher, estimulando uma espécie de fetiche macabro em que todos queriam ver a imagem desse sofrimento.
E, se as pessoas querem ver (e por que querem?), é quase que inevitável que as emissoras sigam repetindo as cenas, num looping sinistro e de mau gosto. Seria pertinente a pergunta: para que, afinal, serve a veiculação dessas imagens? Existe uma convicção implícita que ver a imagem desta mulher no pior momento da sua vida, o qual culminaria na sua morte, deveria ajudar para que esse tipo de crime diminuísse (tenho muitas dúvidas sobre esse efeito), e por fim, que as mulheres passassem a denunciar mais os abusos que sofrem. No fim das contas, não me parece que as imagens servem para nenhuma dessas funções: só estimulam um contraditório prazer masoquista de ver uma mulher, dominada por um homem, sofrendo dores horríveis.
A verdade é que ninguém sabe muito bem como falar sobre violência, e mais especificamente sobre esse tipo. Por isso mesmo, ficou evidente a abordagem rasa dos veículos de comunicação, em tom imperativo, do pragmatismo do “como agir”, sempre batendo na tecla do “mulheres, vocês têm que denunciar” ou do “reconheçam os sinais de que seu marido é violento” (elencando uma lista de características algo estereotipadas: homens que controlam a roupa das mulheres, seu dinheiro, suas amizades, etc.). O resultado, ao que me parece, é que tudo soa muito rasteiro e, por isso mesmo, pouco eficiente. Talvez antes de perguntar por que as mulheres não denunciam, seria mais produtivo que o jornalismo discutisse (de uma forma mais profunda e complexa, que vá além da lista de sinais) por que os homens, em pleno 2018, não conseguem deixar de ser violentos.
No fim das contas, a sensação que dá é: os meios de comunicação seguem olhando essas mulheres violentadas por um olhar pouco empático, por uma visão de superioridade e, por consequência, de profunda distância. Chamou-me atenção a fala de uma repórter, da emissora paranaense RPC, que falava sobre o caso de Tatiane. Ao fim da matéria, a repórter (mulher) interpelou o público dizendo que “nós, mulheres” mereceremos viver sem ter medo, sem nos sentir constantemente inseguras; e, para isso, é importante que “vocês, mulheres”, denunciem seus maridos violentos.
Ou seja, sua fala – provavelmente de forma inconsciente, involuntária – evidencia a extrema dificuldade em abordar a pauta do feminicídio: mesmo as mulheres, quando falam disso, parecem entender como um caso que atinge a outra, a menos esclarecida, a mais pobre. Deste modo, o tema permanece, em alguma medida, silenciado na televisão.