Há quase trinta anos, no dia 1º de maio de 1994, morria o piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna, após sofrer um acidente gravíssimo no GP de San Marino, na cidade italiana de Bolonha. Encerrava-se ali a trajetória triunfal de um dos maiores esportivos brasileiros – e iniciava-se, a partir desse momento, a construção televisiva da narrativa de um mito.
Passados tantos anos, já há quase tanto tempo que o perdemos quanto a idade que Senna teve em vida (morreu aos 34 anos). Ou seja, são duas décadas e meia em que a história do piloto tem sido contada e recontada pelos meios de comunicação – em especial, pela própria televisão, a quem cabe a emissão da Fórmula 1 e que é, consequentemente, a responsável pela construção e pela manutenção do mito de Senna.
Depois de uma semana inteira de matérias em diversas emissoras relembrando os 25 anos da morte, uma reportagem muito oportuna e bem produzida foi exibida no Esporte Espetacular, no domingo, pegando um mote bem pensado: o de apresentar, talvez pela primeira vez, a história de Ayrton Senna para crianças que já nasceram muito tempo depois de o esportista ter partido. Em uma reportagem longa (com mais de 30 minutos), bastante emocionante, convidados célebres e próximos ao piloto – gente como Galvão Bueno, Hortência, Sergio Groisman, Rubens Barrichello, Viviane Senna – explicam para os pequenos (boa parte, crianças atendidas pelo Instituto Ayrton Senna, projeto criado após sua morte) quem foi e quem é esse cara (veja aqui a reportagem).
É uma grande sacada, uma vez que a história de Senna é, sobretudo, uma história midiática – ou seja, mediada e narrativizada pelos meios de comunicação de massa. E foi essa a tônica da reportagem, trazida com precisão nas falas dos convidados. Cabia a eles, em alguma medida, estabelecer, mais uma vez, os pontos que ajudam a consolidar a história de um mito. São estes elementos que pretendo resgatar aqui nesta tentativa de análise.
Ayrton Senna surgiu na Fórmula 1 em 1984, e por isso erigiu um “reinado” no esporte, ao longo de dez anos, exatamente num período de abertura política do Brasil, solidificando-se como um personagem que era, em si, um símbolo de um brasileiro bem-sucedido surgido após o país enfrentar um longo período de trevas e nebulosidade. Senna, com seu talento e suas vitórias – temperados por um carisma tímido que foi bem explorado pela televisão – logo tornou-se um herói possível para os brasileiros.
Tais elementos foram bem aproveitados pela TV (em especial, pela própria Globo, que transmitia as corridas e foi inteiramente responsável pela construção da mítica do esporte): Senna parecia humilde, discreto, mas ao mesmo tempo era arrojado, intempestivo, nervosamente competitivo. Parecia cultivar valores da simplicidade (ainda que a Fórmula 1 seja um esporte caríssimo, reservado para competidores pertencentes à elite), ao mesmo tempo que era um perfeito símbolo da gana capitalista, da vitória da meritocracia, da superação dos limites – “para ele não tinha impossível”, dizia Galvão Bueno.
A morte precoce, aos 34 anos, em circunstâncias trágicas, consolidou para sempre a figura de um herói jovem, que jamais envelheceria, e que seria eternamente cristalizado em uma imagem quase santificada. A título de comparação, é difícil imaginar um culto semelhante, por exemplo, a Pelé, outro grande esportista do país, mas que viveu tempo o suficiente para tornar-se “humano” – portanto, falho – perante as câmeras.
A morte precoce, aos 34 anos, em circunstâncias trágicas, consolidou para sempre a figura de um herói jovem, que jamais envelheceria, e que seria eternamente cristalizado em uma imagem quase santificada.
Há outros mecanismos, aliás, que sedimentaram a visão sobre-humana acerca de Senna: a repetição à exaustão de uma música tema associada a ele, quase sempre executada para ilustrar imagens icônicas do piloto segurando a bandeira do Brasil, num muito explícito – e mesmo simplório – símbolo de um amor à pátria que consola a todos nós. Na reportagem do Esporte Espetacular, tais sentidos são reiterados por Viviane Senna, irmã do ídolo: ela diz que Ayrton não se conformava em ter a chance de ser alguém, enquanto tantos brasileiros estavam condenados a uma vida muito difícil.
Outro elemento que consolidou o mito é o pouco conhecimento veiculado de sua vida pessoal. Diferente de outros atletas – como Neymar, e mesmo o próprio Pelé – Senna foi preservado de uma devassa midiática de sua vida privada. Não teve filhos, e poucos romances seus vieram à público; o mais conhecido dele foi com Xuxa, a “Rainha dos Baixinhos”, ou seja, com outra “olimpiana”, uma escolhida para o panteão das poucas pessoas cercadas de uma aura de magnitude beatificada. Não por acaso, o último relacionamento de Senna, com Adriane Galisteu, deu à modelo uma carreira que transitou entre a sortuda oportunista e a “viúva negra”.
Não obstante, Senna, como todo ser humano, foi complexo. Na sua agressiva competitividade, angariou desafetos, sendo o mais conhecido deles o piloto Nelson Piquet (que talvez tenha sido a única pessoa neste país a falar mal de Ayrton Senna), e um grande rival, o também piloto Alain Prost. Os inimigos, inclusive, são dois elementos cruciais na consolidação do mito do herói. Curiosamente, essa parte nebulosa de sua personalidade (o quanto Senna pode, talvez, ter contribuído para prejudicar os rivais) é pouquíssimo explorada na reportagem do Esporte Espetacular: as referências a Prost e Piquet duram menos que um minuto da longa narrativa.
Eternamente congelado no tempo, Ayrton Senna é o perfeito mito televisivo do herói sem defeitos nem nuances. Por isso mesmo, será para sempre um “receptáculo” adequado para ser apropriado para as narrativas midiáticas de qualquer natureza. Seja esquerda ou direita, conservador ou “petralha”, ninguém ousa mexer na narrativa desse mito, que se encaixa para diversos fins. Curiosamente, é naquilo que tem de mais “quebrado” – nos desvios, nas “fraturas” morais – que Senna parece ser mais próximo a nós, reles mortais. Mas, coletivamente, talvez ainda não tenhamos maturidade suficiente para cultuar os heróis falhos. Cabe à televisão, possivelmente, a coragem de cultivar novas narrativas ao esporte.
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