Os leitores mais atentos desta coluna da Escotilha já devem notado que um tema perpassa as discussões trazidas aqui: o fato de que o público está (ou crê estar, pouco importa) cada vez mais crítico quanto àquilo que consome diariamente nos seus meios de comunicação. Nós todos já fazemos parte de uma geração acostumada desde cedo a conviver com as mídias, o que nos torna, de uma forma ou outra, experts nelas. Não por acaso, diria que hoje a desconfiança, especialmente quanto aos grandes, tem se tornado a norma, antes que a exceção (tema já abordado aqui).
Esta ideia me leva a refletir sobre um aspecto interessante neste fenômeno da “cultura das mídias” e na relação conflituosa que mantemos com elas. Dia desses, em uma conversa, me veio à mente a seguinte elucubração, que compartilho aqui no intuito de estimular o debate. Nesta terra de gigantes midiáticos, é muito interessante observar o quanto tais posturas de desconfiança em relação aos grandes conglomerados de comunicação e aos seus maiores atores parece não se aplicar a Silvio Santos, que se tornou uma espécie de patrimônio nacional e personificou uma emissora cuja baixa qualidade nós relevamos. Aos seus 33 anos de idade, o SBT se consolidou assumindo-se como eterno segundo lugar e apostando em uma relação de proximidade com o espectador, povoando sua memória afetiva (eu mesma, criança que assistia a Bozo e Vovó Mafalda, lembro-me de comunicar aos meus pais, lá pelos 5 anos, que meu partido político era o SBT).
Ou seja, mesmo que estejamos convictos da má qualidade de muito do que o SBT fez e faz, parece que estamos sempre propensos a desculpar estas escolhas e manter a emissora num lugar cativo. Só para pontuar alguns destes (maus) elementos que sustentam a crítica ao SBT: a alta quantidade de “enlatados” na grade, os inofensivos produtos de exportação que são vendidos para muitos países e se encaixam sem dificuldades em diversas culturas, como as novelas da mexicana Televisa; o baixo investimento em jornalismo de qualidade e o “pioneirismo” em formatos popularescos, como o extinto Aqui Agora; a contratação e manutenção de Rachel Scheherazade, com sua bandeira de opinião conservadora travestida de jornalismo.
É quase como se os sucessos do SBT nos vingassem, em algum sentido, dos excessos e dos abusos cometidos pela gigante Globo. Talvez a assunção de ser menor e menos poderosa, por fim, tenha protegido o SBT na redoma de guilty pleasure.
Os exemplos seguiriam infinitamente, assim como talvez seguisse o nosso “perdão” à emissora de SS que, acredito, concretiza um papel de Davi nesta arena em que Golias – a Rede Globo sentada em seu eterno primeiro lugar – é alvo de todo tipo de crítica. É quase como se os sucessos da emissora (cada vez mais esparsos), obtidos por meio de recursos evidentemente parcos (parece não conseguir criar nada que supere a audiência de Chaves), nos vingassem, em algum sentido, dos excessos e dos abusos cometidos pela gigante Globo. Talvez a assunção de ser menor e menos poderosa, por fim, tenha protegido o SBT na redoma de guilty pleasure. A personalização da emissora na figura de Silvio Santos, este caso à parte na história da comunicação brasileira, colabora a sensação de intimidade e de parentesco. De alguma forma, todos fazemos parte da torcida para que este Davi, milagrosamente, enfrente e mesmo derrote seu opressor.
Em nome deste carinho que habita o nosso inconsciente coletivo nacional, e em prol de alguma análise razoavelmente objetiva, arrisco-me aqui a elencar alguns momentos memoráveis da emissora de Silvio Santos. São programas e episódios que, se não são lembrados necessariamente por qualidade, marcaram de alguma maneira o que decorreu posteriormente nas mídias e evidenciaram certo protagonismo do SBT em algumas questões televisivas. Advirto o leitor que estes momentos estão assumidamente mediados pela minha relação pessoal com a emissora, e certamente não fazem jus aos seus 33 anos de histórias.
- O programa Casos de família em sua primeira edição, veiculada entre 2004 e 2009. Antes da versão “mundo cão” encabeçada por Christina Rocha, o programa foi apresentado pela jornalista Regina Volpato e configurava uma pérola escondida na grade. Em uma espécie de terapia coletiva, o programa dava espaço para que a população narrasse seus dramas e conflitos por meio das tramas constituídas por sua linguagem, com suas limitações e riquezas. Temas difíceis como preconceito, racismo, educação, pobreza e desigualdade social eram abordados de uma forma terna mas nada condescendente por Regina que, arrisco dizer, aparenta-se de Eliane Brum no seu talento para a escuta e pelo respeito à verdade do outro. Infelizmente, Silvio Santos acabou demandando a reformulação completa deste programa em busca de melhores níveis de audiência.
- Conforme muitos já lembraram, Silvio Santos deu espaço à discussão sobre a transgeneridade antes que outros canais. Nos anos 90, o programa Show de Calouros já trazia um quadro semanal com um concurso de “transformistas”, muito antes de que Ru Paul’s Drag Race viesse a conquistar o mundo e difundir o universo das drags na cultura. A dignidade dada a estes performers se refletia no tratamento dado por Silvio Santos a eles: exatamente o mesmo que era concedido aos outros artistas participantes do programa.
- O SBT “furou” a Globo, que havia adquirido a franquia do Big Brother, e lançou em 2001, sem divulgação prévia, a primeira edição de Casa dos Artistas, reality show que reunia celebridades como Supla, Barbara Paz e Alexandre Frota. Todos adquiriram uma longa sobrevida midiática graças a esse programa, que já reunia todos os elementos melodramáticos do formato, como os romances complicados, os conluios, as injustiças e os vilões. Como um deus ex machina, Silvio Santos interferia o tempo todo nos rumos no programa (chegou a colocar Alexandre Frota de volta na casa depois de ele ter sido eliminado). A Globo só estrearia BBB 1 em 2002. Até o buraco da fechadura da “espiadinha” do BBB já estava lá. A Globo, junto à Endemol, ainda processaria o SBT por plágio, mas acabaria perdendo. Nada mal para um verdadeiro Davi da televisão brasileira.
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