Recentemente, assisti ao programa Drag Race Espanha – versão espanhola do reality show criado por RuPaul em 2009 e que hoje se tornou uma franquia profícua, capaz de estender braços por vários países.
A disputa entre as drags (que competem em provas que requisitam inúmeras habilidades: de dança, interpretação, costura, canto, humor) deu certo, na minha visão, por um motivo principal: a capacidade de oferecer um universo completo pronto para o culto dos fãs, que de lá tiram muitos motivos para alegrar-se. Quem vê RuPaul’s Drag Race, além de se entreter com as participantes, tem ao seu dispor um mundo inclusivo, acolhedor, com diversas portas para entrar.
Quando um programa televisivo vira uma franquia que espalha por países, um fenômeno interessante acontece: como é possível que uma “matriz” continue fiel à sua identidade e, ao mesmo tempo, consiga refletir a cultura em que se instala?
Assisti a duas dessas “filiais”: Drag Race Canadá e Drag Race Espanha. Em comum, ambos os programas se alimentam de uma estrutura, com a mesmíssima sistemática (um apresentador/a numa bancada, cercada de jurados fixos, que atuam como uma escada, e competidoras que disputam as mesmas provas da atração original). Ou seja, a “receita” é a mesma do original, bem como o tom da transmissão – acentuado, por exemplo, pelas músicas de RuPaul na trilha, pelos efeitos sonoros e pela repetição sistemática dos bordões. RuPaul, no entanto, nunca dá as caras nessas filiais: sua presença é meio etérea, como se representasse apenas o espírito do programa, a mãe onisciente e onipresente.
Gostei relativamente do Drag Race Canadá e amei Drag Race Espanha. Tentando analisar as razões desta preferência, cheguei a algumas conclusões: enquanto o programa do Canadá tentava trazer os ares (por vezes, meio estereotipados) da cultura canadense (como celebridades locais, piadas internas, referências às comidas típicas do país), o programa espanhol enaltecia uma latinidade mais caliente – bem próxima, portanto, da nossa realidade brasileira.
Com o tempo, drag queen tornou-se um conceito mais fluido, e forçou que a franquia Drag Race, após acusações de transfobia, precisou mudar alguns elementos.
Além disso, o Drag Race Espanha, me parece, se afastou mais do programa original. Havia muito mais referências à cultura LGBTQIA+ espanhola do que à americana.
O programa celebrou o tempo todo a série La Veneno, que conta a história de uma transexual espanhola (inclusive, os criadores de La Veneno, o casal Javier Calvo e Javier Ambrossi, compõem o elenco de jurados fixos de Drag Race Espanha), e incluiu desafios que homenageavam a cantora Rosalía e séries locais.
Os bordões do programa original, quando não traduzidos, foram mudados pela apresentadora Supremme de Luxe. A presença de RuPaul nessa franquia, portanto, era apenas um sopro – e por isso, talvez, o programa tenha sido tão divertido.
E para felicidade (e desespero) de muitos, parece que finalmente a corrida das drags chegará ao Brasil. Na semana que se passou, uma notícia bombou nas redes: o de que a versão nacional estrearia em 2022, no canal Multishow, e possivelmente sendo depois exibida em TV aberta. Mas a alegria de alguns logo se desdobrou numa polêmica, por conta da versão brazuca de RuPaul: Xuxa Meneghel foi anunciada como a capitã deste reality.
As redes se alvoroçaram em torno de uma discussão: se hoje discutimos tanto a questão da representatividade, faz sentido que a atração seja apresentada por uma mulher cis, e não por uma drag queen? Sem dúvida, esta é uma pergunta de muita importância (e caso o conceito de representatividade ainda pareça vago a você, sugiro o documentário Disclosure, disponível na Netflix).
Tentarei organizar aqui alguns dos argumentos surgidos a partir desta notícia. O grande problema de colocar Xuxa à frente da atração é desprestigiar uma drag queen para jogar os holofotes sobre uma mulher cis. Em outras palavras: se não temos drag queens apresentadoras, isso reflete uma exclusão histórica que as impediu de chegar neste lugar; logo, dar este espaço a Xuxa, que já é uma estrela televisiva, seria ajudar a perpetuar este problema.
Mas há os que defendam esta decisão, argumentando que Xuxa é um nome importantíssimo na cultura LGBTQIA+, ou seja, não uma pessoa estranha que pretende navegar em uma onda. Outros também lembraram que ela, com seus figurinos exuberantes e os cenários extravagantes dos seus programas, sempre foi praticamente uma drag. Há também o argumento econômico: como a televisão é um veículo caro, colocar Xuxa à frente da atração, ao invés de arriscar em outros nomes, seria uma forma de garantir anunciantes e, consequentemente, a viabilidade do programa.
Este texto não pretende chegar a uma posição definitiva (em parte, porque falta a essa colunista lugar de fala sobre a questão), mas pretendo colocar alguns pontos neste debate. O primeiro deles diz respeito à complexificação na questão de gênero – que afetou, inclusive, o programa original de RuPaul.
A palavra drag queen significa originalmente “um artista que usa roupas e elementos como peruca e maquiagem, frequentemente do gênero oposto, para fins de entretenimento. Qualquer pessoa, homo, hétero ou bissexual, cis ou transgênera, pode ser uma drag queen (ou drag king, como são chamadas as mulheres com personagens masculinos)”. O drag do termo, na verdade, é uma abreviação para “dressed as a girl”, e indicava no roteiro os atores que se vestiam de mulher durante uma peça, já que elas não podiam atuar (nas montagens originais de Shakespeare, por exemplo, as personagens femininas eram performadas por homens).
Com o tempo, drag queen tornou-se um conceito mais fluido, e forçou que a franquia Drag Race, após acusações de transfobia, mudasse alguns elementos. Mulheres trans que competiam no programa passaram a ser apresentadas como tal. RuPaul, inclusive, alterou o bordão “May the best woman win” para “May the best drag queen win”, de forma a não restringir as competidoras ao gênero feminino cis e, assim, incluir pessoas não-binárias.
Outro elemento importante é que o conceito de drag queen se estendeu no programa. Na temporada 13, RuPaul’s Drag Race teve como participante Gottmik, o primeiro homem trans a entrar na franquia. E recentemente houve o anúncio de que a próxima temporada de Drag Race UK terá uma mulher cisgênero na sua corrida.
Todas essas informações, portanto, nos fazem pensar: será que o universo das drags já não se tornou inclusivo o suficiente para romper as últimas barreiras de gênero? Não tenho a resposta, nem minimizo a cobrança por representatividade. Mas, ao pensar no esperado Drag Race Brasil, minhas preocupações são outras.
Estou mais curiosa em ver como o nosso programa conseguirá refletir (ou não) a cultura LGBTQIA+ sem cair no estereótipo ou sem se tornar uma mera transposição das referências de RuPaul para o contexto brasileiro – o que, certamente, enfraqueceria o show.
Além disso, há outra questão: o Brasil já se tornou um país fortíssimo em drag queens, com nomes como Pabllo Vittar, Gloria Groove, Ikaro Kadoshi, Rita Von Hunty. Isso sem falar, claro, das pioneiras, como Silvetty Montilla, Alexia Twister (que, inclusive, apresentaram o programa Academia de Drags, disponível no YouTube), Márcia Pantera, Nanny People. Ou seja, temos nossa própria realeza – que, num caso desse programa, estariam aptas para serem juradas ou competidoras? Com a tradição que temos de grandes nomes da arte drag, vai faltar cadeira para tanta convidada.