Cena do Big Brother Brasil 23: dois homens heterossexuais participam de uma típica festa do programa, regada a muito álcool. O funkeiro MC Guimê e o lutador Cara de Sapato mantêm comportamentos inapropriados contra a uma mulher recém-chegada à casa, a mexicana Dania Mendez.
Guimê apalpou os seios de Dania, tentou apalpar sua bunda e deu um tapa em outra participante, Bruna Griphão. Já Cara de Sapato tentou beijar Dania à força. Ambos foram eliminados do programa (a TV Globo evitou o uso da expressão “expulsos”).
Corta para a última semana, quando o portal Metrópoles soltou um furo de reportagem. O repórter Guilherme Amado entrevistou 11 pessoas (4 vítimas e 7 testemunhas) que falaram, pela primeira vez, sobre a convivência abusiva com o então diretor de humor da TV Globo, Marcius Melhem.
A entrevista dá continuidade à denúncia feita pela comediante Dani Calabresa em dezembro de 2019 sobre o assédio que sofreu do chefe por vários meses. Desde então, Dani e Melhem têm travado uma espécie de disputa pública de suas versões sobre o que teria acontecido nos bastidores durante os anos de produção de programas de sucesso, como o Zorra, Escolinha do Professor Raimundo e Tá no Ar.
Em resumo, ele tenta enquadrar os relatos dela como parte da relação entre dois – tóxica, admite, porém consensual. Buscava corroborar sua versão pela falta de outros depoentes falando sobre o assédio, já que apenas ela havia se manifestado publicamente como vítima. Até agora.
O que tem a ver?
Aparentemente, os dois casos não se relacionam em nada. Na primeira história, estamos diante, mais uma vez, de uma transmissão de uma situação deste tipo em rede nacional – um bônus agregado a um programa que tira proveito da ideia de que todos os participantes do BBB tentam se apresentar como “si mesmos”.
Pode-se dizer que episódios como esse, do BBB 23, por piores que sejam, têm até um fundo pedagógico: eles ajudam a levantar uma discussão e a “educar” coletivamente sobre o que não se pode mais fazer.
Mesmo que todos ali estejam (e cada vez mais) preocupados e treinados para preservar sua imagem pública, sempre chega um momento em que essa performance descansa. E aí os comportamentos não-controlados – como o ato de passar a mão no corpo de uma mulher e tentar beijá-la à força – vem à tona. Por ser uma casa 100% vigiada por câmeras, estes momentos são capturados por diversos ângulos.
Neste sentido, pode-se dizer que episódios como esse, do BBB 23, por piores que sejam, têm até um fundo pedagógico: eles ajudam a levantar uma discussão e a “educar” coletivamente sobre o que não se pode mais fazer, seja na frente das câmeras ou na chamada “vida real”.
E aí chegamos à questão envolvendo Marcius Melhem, Dani Calabresa e toda a trupe vitoriosa do humor televisivo da Globo por anos. O que a entrevista do Metrópoles nos traz é uma oportunidade rara: a de ouvir um testemunho sobre como se dá o funcionamento interno de uma grande emissora.
Obviamente, trata-se de uma empresa de proporções gigantescas, com posições hierárquicas e inevitáveis jogos de poder. Contudo, essas relações costumam ficar invisibilizadas quando passam a envolver um trabalho artístico.
Um ponto que chama muita atenção na fala dos participantes da entrevista de Guilherme Amado é o fato de que muitas situações de abuso pareciam difíceis de serem apontadas como tal por se tratarem de profissionais do humor.
Um exemplo disso ocorre quando a roteirista Luciana Fregolente relata duas situações: de quando ela foi chamada para uma reunião com Melhem e ele a recebeu apenas de cueca, e quando ele exibiu para a equipe toda um videoclipe antigo em que Luciana aparecia com os seios expostos. Já a atriz Veronica Debom conta de um caso em que ele fez uma brincadeira em público dizendo que ela devia um “boquete” ao chefe por ter apostado em seu talento.
Ambas as profissionais afirmam ter reagido no momento com humor, para extravasar a tensão daquelas situações. E a defesa de Marcius Melhem, na entrevista posterior realizada por Guilherme Amado, se sustenta na ideia da piada e um trote a recém-chegados.
Ao longo de quase uma hora e meia de entrevista, a parte mais impactante para mim foi sentir-me diante de uma série de depoimentos descrevendo um ambiente de trabalho tenso, mas frequentado por pessoas que estavam nos entregando o que havia de mais engraçado e leve na televisão naquele momento. O que leva à sensação de que ainda sabemos muito pouco das “entranhas” dos grandes veículos.
Neste sentido, um programa que se sustenta justamente na exposição pública das “vísceras” dos relacionamentos interpessoais é inevitavelmente mais franco e transparente do que boa parte daquilo que estamos assistindo na TV. Talvez haja uma lição a ser tirada daqui.
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