Quer ser escolhido para participar de um dos tantos reality shows da TV? Parece haver uma receita para isso: seja o indivíduo mais excêntrico que for possível, ou pelo menos aparente ser. “Monte” um personagem claro, facilmente identificável – em outras palavras, que seja risível. E, acima de tudo, creia que estar na TV é um valor por si mesmo, não importa o que façam com aquilo que você diz e faz.
Muitos se surpreendem com a longevidade (e a diversidade) dos formatos reality shows, esses irresistíveis programas cuja atração principal é o simples fato de não se tratar de uma ficção. Eles nos atraem justamente por acreditarmos estar vendo ali um tiquinho da vida real, tal como ela se desenrola como se não houvesse câmera posicionada filmando o que ocorre. E é isso que faz que há tanto tempo – pelo menos desde Real World, na MTV, em 1992 – estejamos propensos a ficar parados na frente da televisão assistindo a esses “programas sobre nada”.
Ou seja, há pelo menos 25 anos convivemos cotidianamente com pessoas aleatórias aparecendo na TV, representando elas mesmas. Ultimamente, os canais têm apostado nos reality shows competitivos, em especial, nos que envolvem disputas culinárias. Assistimos a sucessivas edições de MasterChef Brasil, e nas últimas semanas, reestrearam BBQ Brasil e Bake Off Brasil, ambos no SBT. Em alguma medida, é uma febre – e algo interessante de constatar se formos pensar que a TV está fatalmente divorciada com os sentidos (o paladar e o olfato) que nos ligam à comida.
Não pretendo entrar no mérito exatamente sobre as especificidades das competições, mas sim em algo que por vezes fica como pano de fundo, que é a seleção do cast dos programas – e de que forma essas pessoas são apresentadas ao público. Ainda que o foco destes programas seja a disputa, em primeiro lugar, para configurar como reality, eles precisam construir minimamente os personagens que subirão nestes palcos televisivos. O que tem me chamado a atenção é justamente como eles têm vindo à tona de forma cada vez mais caricaturada, estereotipada.
Os reality shows simplesmente reproduzem uma lógica que está fora deles. O “show do eu” é a regra na vida contemporânea.
O começo de cada reality show costuma acontecer por uma mesma fórmula: apresenta-se uma gama de interessados diversos, os quais serão peneirados numa primeira seleção. Geralmente há ali uma espécie de show de horrores: estas prévias tendem a trazer os mais bizarros, aqueles que – em busca de alguns segundinhos de fama – vieram dar sua cara à tapa, nem que seja aparecendo mal. Basta lembrar das antigas seletivas do Big Brother Brasil que eram veiculados os mais excêntricos dos candidatos, geralmente em gravações bem precárias feitas em cada canto do Brasil (havia, inclusive, um velado preconceito de classe nesses vídeos). Já no MasterChef Brasil, incautos vão até à cozinha para preparar comidas horrorosas e falar um pouco sobre si mesmos.
Esse mesmo esquema (o de destacar o que há de mais “exótico” nos participantes) foi repetido nas reestreias de BBQ Brasil e Bake Off Brasil. Dentre os participantes, estão um gaúcho que veio totalmente pilchado (com as roupas tradicionais do estado – bombacha, bota, lenço, etc.), um monge que só se apresenta de hábito, um homem que está sempre com um turbante na cabeça, uma menina que se vangloria de conversar com os eletrodomésticos, uma “ex-funkeira” que usa maquiagem fosforescente e é chamada de “perereca” pelos colegas (em referência ao seu antigo nome artístico). Quando necessário, todas estas nuances da performance costumam ser explicadas sob a alcunha da “personalidade forte”.
Alguém poderia dizer que eles escolhem voluntariamente aparecer assim, mas também é possível notar que isto é destacado na edição. Por exemplo, em Bake Off Brasil, nas diversas vezes que aparece uma participante que é comissária de bordo (que, curiosamente, está sempre de lenço amarrado no pescoço, tal qual uma aeromoça de filme), o texto lido em off associa a ela verbos ligados à aviação. A edição busca defini-la, prioritariamente, pela profissão algo inóspita.
Como sempre dizemos aqui, a TV só faz sentido na medida em que reflete o social, e podemos dizer que o mesmo ocorre aqui. São muitos os autores que nos apontam que vivemos amarrados às aparências – no sentido de que parecer ser, em um mundo em que as velocidades são frementes, é o caminho possível para podermos nos destacar e convencer alguém de algo. Nesse universo de identidades líquidas, fugazes, eu sou quem sou primeiro na esfera do visível, da superfície. Os realities simplesmente reproduzem uma lógica que está fora deles. O “show do eu” é a regra na vida contemporânea.
Nesse sentido, um programa sintomático é A Casa, da Record, que leva esta premissa às últimas consequências. A atração começou com 100 participantes, os quais foram sendo eliminados por meio de provas e decisões pessoais. Em um programa de 100 pessoas, a necessidade de encontrar alguma forma de se destacar parece pulsar entre os confinados. Há um participante, por exemplo, que jamais tira da cabeça um reluzente chifre de unicórnio, e muitos deles afirmam, ao longo dos episódios, que estão ali em busca de visibilidade, “para aparecer”, e não atrás de dinheiro (curiosamente, temos a cada dia mais relatos que mostram que entrar num reality show nem sempre – ou quase nunca – é um bom negócio).
E sendo assim, os reality shows continuam configurando como um verdadeiro zoológico da bizarrice humana, apresentando “espécimes” raros para nosso bel prazer. O que vemos, muitas vezes, são caricaturas de indivíduos que são bem mais complexos que aquilo que escolhem apresentar na TV. Isto é possível, é claro, porque ainda tem bastante gente que considera que continua valendo a pena negociar sua vida privada em prol de uns minutos de fama.