Em vários textos publicados nesta coluna, defendi a ideia de que a televisão reflete a cultura em que se insere – seja pelos seus valores, seja pelas suas disfunções. Se os programas de tevê são produzidos por seres humanos como eu e você, é mais que natural que eles repercutam justamente o mundo tal qual ele transcorre fora do veículo. Por isso mesmo, não deveria causar espanto dizer que, ao fim das contas, a televisão somos nós.
Isso cabe para todo o tipo de programação, seja o mais erudito e cultuado dos produtos, seja o mais popularesco e execrado. Se a TV reflete seu contexto, então, observamos um programa de uma longevidade como o Big Brother Brasil é – me desculpem a redundância – entender um pouco sobre o Brasil. Então faz sentido pensarmos que, em 16 anos de programa (a primeira e segunda edições passaram no mesmo ano, 2002), a atração mudou conforme a cultura foi mudando. Passou de ser um jogo que avaliava apenas condições financeiras (as pessoas mais pobres, que mereceriam mais o prêmio, foram favorecidas nas edições iniciais, quando ainda havia participantes selecionados por sorteio) para um programa que envolve estratégia, autenticidade, forte discussão moral e novos aspectos que entram na roda a cada ano.
Se 2017 foi o ano em que se falou muito de empoderamento e feminismo – a ponto de esvaziar, em alguma medida, a palavra de seu sentido original -, talvez possamos dizer que em 2018, até o momento, usou-se muito a palavra representatividade. E por essa razão, a palavra logicamente repercutiu no BBB 18, gerando uma reflexão interessante. Representatividade diz respeito à importância de que uma minoria esteja representada minimamente dentro de um grupo, para que ela simplesmente exista. Traduzindo: é necessário que um programa que busca falar do Brasil, tal como o BBB, esteja preocupado em pintar, por meio do seu elenco, um retrato complexo do que é a população do país – caso não o faça, corre o risco de consolidar a ideia de que o país não tem miscigenação racial, nem pessoas subjugadas à margem, nem indivíduos com orientações sexuais diversas para além da heteronormativa, numa lista que se segue ad eternum.
No BBB 18, portanto, a palavra representatividade foi usada à revelia, especialmente por uma participante, a jornalista Nayara, que se julgava uma defensora dessa ideia e assim defendia sua permanência na casa, ainda que a personalidade que mostrasse fosse um tanto contraditória em relação às causas que defendia. Para ela, representatividade seria a condição última para a manutenção de um participante no programa. Foi execrada rapidamente assim que foi parar no paredão – mostrando que, para a audiência, este talvez não seja um valor cultural tão relevante para nós. Talvez não priorizemos, em última instância, ver-nos representados na tela.
Mas se representatividade não é tão importante, então o que é? Uma leitura panorâmica da edição 18 do BBB nos mostra que essa foi uma edição interessante, alto astral (curando a ressaca borocoxô da anterior, como lembrou Maurício Stycer), com personagens “gostáveis” e carismáticos, capazes de mobilizar uma forte torcida (o que também não diz muito – já que mesmo Emilly, do BBB 17, conseguiu levantar um inimaginável fandom). Foi uma edição que contabilizou avanços na dinâmica do funcionamento do jogo, mas também alguns retrocessos.
Se a sacada da jogada “familiar” não foi novidade (em 2017, o programa iniciou com duas duplas de irmãos gêmeos: Antônio e Manoel; Mayla e Emilly), ela atingiu uma configuração inédita em 2018, exibindo uma dinâmica divertida entre pai e filha. Ayrton e Ana Clara transpuseram à tela uma espécie de sitcom particular, simultaneamente cômica e cativante. Uma das cartas do BBB 18, portanto, foi a ideia de se tratar de um programa familiar, para se assistir em grupo e não sozinho – tom que ficou explícito na estratégia de apresentar, já na abertura, cada participante junto aos parentes, sua torcida mais primordial. Uma estratégia bastante significativa em tempos que a TV se caracteriza cada vez mais como um veículo que se consome online, por meio de uma segunda tela, e não mais comentando com aqueles que estão próximos, como ocorria em outros momentos históricos.
Outro aspecto interessante do BBB 18 foi notar o quanto certos discursos moralistas baratos – como as longas falas do participante Lucas e as frases vazias de autoajuda de Jéssica – viraram rapidamente motivo de escárnio. Lucas, inclusive, foi detonado pela edição, que significou suas atitudes (a de soltar conselhos para quem não havia pedido) como aqueles áudios intermináveis de WhatsApp que ninguém aguenta ouvir. Ponto positivo para nós, o público, uma vez que esse tipo de estratégia parece não mais colar.
Mais uma edição do BBB se encerra, revelando ainda ter fôlego para novas temporadas, por mais incrível que isso possa aparecer. E desta forma seguirá sendo enquanto o programa continuar bem-sucedido nesta tarefa de falar sobre nós.
Houve ainda um Brasil que se sentiu recompensado pela vitória de Gleici, uma participante que começou tímida, pelas beiradas, mas sem jamais se esconder entre as “plantas”. No entanto, a torcida que se configurou polarizada entre o bem (Gleici, família Lima e seus amigos) e o mal (o “Trio Mandinga” e demais conspiradores) revelou uma espécie de “involução” no programa. A edição pesada colocada ao programa – basta dizer que é bem difícil simpatizar por um grupo denominado de “Mandinga” – trouxe um tom melodramático à edição, restringindo pessoas complexas a papéis marcados, como se elas não fossem muito mais que isso. A continuidade com o melodrama foi tão forte que a própria Gleici protagonizou uma cena em que retornava para o programa repetindo uma frase célebre da personagem Clara da novela O Outro Lado do Paraíso, quando ela anuncia sua vingança. Na edição do BBB, a mesma música do Bon Jovi, usada na cena da novela, foi utilizada para significar a volta de Gleici.
E por que afirmo que isso é uma involução? Pelo simples fato de que a narrativa maniqueísta, embora seja reconfortante (afinal, nos sentimos recompensados pela vitória do bem no final), é um tanto limitada e dá espaço a pouca reflexão. Cada um de nós que se sentiu vingado em cada derrota do “povo do mal” perdeu uma oportunidade de reconhecermos que, nós mesmos, desempenhamos a maldade uma quantidade de vezes na nossa vida e na dos outros, queiramos ou não.
Além disso, cabe dizer que a ideia de que venceu alguém bonzinho, que, por isso mesmo, merecia mais que os outros (Gleici é pobre, negra, vem de um estado pouco abordado nas mídias nacionais, o Acre), acaba por prender a participante a uma categoria que não cabe a ela. Apelidada de “fada” nas redes sociais e no próprio programa – possivelmente, por seu aspecto doce e frágil –, Gleici era forte, combativa, retruqueira, escolhia lados quando encarava um conflito. Ao sair da casa, inclusive, tal como Viegas (que também escapava de qualquer papel colado a ele), soltou um “Lula livre”. Gleici mereceu ganhar não por ser fada, mas por ser quem era.
E assim mais uma edição do BBB se encerra, revelando ainda ter fôlego para novas temporadas, por mais incrível que isso possa aparecer. E desta forma seguirá sendo enquanto o programa continuar bem-sucedido nesta louca tarefa de falar sobre nós.