Apresentar um produto de excelência é uma faca de dois gumes. Depois de entregar conteúdos acima da média, a tendência é que a expectativa aumente, nunca diminua. Até relevamos algumas vaciladas aqui e ali, mas quando a expectativa nunca mais é alcançada, nós abandonamos sem dó nem piedade.
Esse parece ser o caso de Black Mirror, que desde a terceira temporada (sejamos sinceros) não mostra aquele fôlego de seus dois primeiros anos, quando apresentava apenas três episódios por temporada. A transferência da série do canal britânico Channel 4 para a Netflix pode não ter nada a ver com a queda da qualidade no roteiro da série (afinal, o roteirista é o próprio Charlie Brooker, criador do show), mas, no mínimo, é uma coincidência interessante. No momento em que a série ganha projeção mundial, as histórias ficam um pouco mais óbvias (caso do terceiro ano) ou focam mais na ficção científica do que em grandes reflexões sobre como a sociedade se comporta perante a tecnologia.
Mas talvez a culpa seja somente nossa. Charlie Brooker disse em várias entrevistas que ele nunca quis que Black Mirror fosse somente uma grande metáfora sobre a perversidade da tecnologia, mas uma uma série sobre ficção científica pura, como a clássica Além da Imaginação, Night Vision e até Arquivo-X. E sejamos ainda mais sinceros, a série continua apresentando histórias no mínimo interessantes. É que nós queremos que nossa cabeça exploda.
O grande problema desse ano é que todos os episódios são facilmente esquecíveis.
Mas há também um claro cansaço no texto de Brooker. Assinando todos os episódios, ele não dá espaço para mais ninguém na sua série, permitindo somente diferentes diretores que garantem um certo frescor às histórias (caso de “Crocodile” e “Metalhead” este ano, mesmo que o roteiro dos dois episódios seja estranho). O sucesso, entretanto, é palpável e ficarei muito surpreso se a Netflix não renovar a série para mais uma temporada ou até mesmo duas, caso dividam novamente os 12 episódios em dois anos. Falta para Charlie Brooker, então, tentar ouvir outras histórias e pontos de vista para que mãos novas toquem Black Mirror sem perder sua essência.
O grande problema desse ano é que todos os episódios são facilmente esquecíveis. Da mesma forma como ocorreu no ano passado, os assuntos não são nada sutis, tudo fico muito óbvio e mesmo os episódios que parecem complexos, na verdade, não são nada além do que uma reflexão um tanto quanto rasa. Falta o elemento humano, a empatia, o se imaginar naquelas histórias, as ações reais que nós poderíamos fazer e não apenas os personagens. Brooker, por fim, parece apenas reciclar as mesmas histórias dos anos anteriores, o que é algo frustrante.
Mas vamos às análises dos seis novos episódios
USS Callister
Escrito por Charlie Brooker e William Bridges; dirigido por Toby Haynes
A digitalização da consciência é o grande mote dessa temporada, já que praticamente todos os episódios focam nisso. “USS Callister” faz uma releitura um pouco perturbadora de Star Trek, falando sobre solidão e como a tecnologia faz a gente entrar numa realidade paralela que pode ser bastante perigosa. Mas o grande objetivo é brincar com a nostalgia, o que deve agradar muitos fãs da saga Star Trek.
É divertido ver uma certa quebra na narrativa tradicional da série e perceber como Charlie Brooker resolveu relaxar um pouco de toda a tensão e criar um episódio leve, ainda que o leve de Black Mirror traga tons pesados. Para mim, não funcionou apenas porque não criei nenhuma empatia com os personagens e por ter zero relação com Star Trek. Ainda assim, é um bom episódio, mesmo nada memorável.
Arkangel
Escrito por Charlie Brooker; dirigido por Jodie Foster
É um episódio típico de Black Mirror e aqui ganha destaque por ser dirigido por Jodie Foster, que vai bem atrás das câmeras. Na história, Sara (Rosemarie Dewitt) é uma mãe extremamente preocupada com sua filha (vivida por três atrizes ao longo dos anos: Anya Hodge, Sarah Abbott e Brenna Harding). A mãe instala um chip na cabeça da filha ainda bebê, que permite monitorá-la em todos os momentos, além de poder enxergar por meio de um tablet a mesma coisa que a filha enxerga, 24 horas por dia. É claro que isso não dá certo.
O mais bacana é a reflexão sobre o limite da privacidade entre pais e filhos, a desumanização que a tecnologia causa e o que ocorre quando um ser humano é ultraprotegido, não sabendo lidar com frustrações, medos e decepções. Outra coisa bacana desse episódio (talvez o único que faça isso) é a possibilidade de nos colocarmos no lugar das personagens. Se fôssemos a mãe, usaríamos ou não o tablet para ficar monitorando a cria? Até que ponto a gente se meteria na vida dos filhos?
O problema é tudo isso é mais do mesmo. E esse mesmo começar a ficar chato, especialmente lá pelo final do episódio, que descamba para um festival de ações exageradas, nada coerentes e até clichês. Black Mirror era mais sutil do que isso e quando apela para soluções fáceis, o impacto acaba sendo esvaziado completamente.
Crocodile
Escrito por Charlie Brooker; dirigido por John Hillcoat
O terceiro episódio tem algumas qualidades inegáveis, o problema é que nada faz sentido. A história começa com um casal de jovens que atropela um ciclista na estrada. O motorista, namorado de Mia (Andrea Riseborough), claro, decide se livrar do corpo e não avisar a polícia. Aquela coisa toda. Depois de 15 anos, Mia supera esse fato, se torna uma mulher rica e bem-sucedida, casada e com filho. Só que o ex-namorado volta todo perturbado da cabeça querendo se redimir do que fizeram no passado. A trama ainda acompanha uma funcionária de uma seguradora (Kiran Sonia) que analisa os acidentes causados com seus clientes, a fim de que o processo seja bem embasado e com provas. Para isso, ela utiliza uma ferramenta que dá acesso às antigas memórias das pessoas (de novo esse tema).
A partir desse plot, a série entra numa espiral de erros e absurdos que, particularmente, me lembrou bastante a série Fargo, o que para mim é uma qualidade. Quanto mais a personagem tenta se livrar das burradas que comete, mais a situação vai piorando, o que garante algo divertido e deixa o público bastante tenso. Entretanto, as ações de Mia não fazem o menor sentido, o que também irrita. É tanta besteira que fica difícil acreditarmos ou embarcarmos naquela história, porque soa surreal demais até para os padrões Black Mirror. Claramente o roteiro de Charlie Brooker tenta soar espertinho e irônico, meio que “tudo o que você faz um dia volta para você”, mas no final, só saltou aos olhos os enormes furos na história, mesmo com um final engraçadinho
Hang the DJ
Escrito por Charlie Brooker; dirigido por Tim Van Patten
Mais um episódio clássico de Black Mirror e que, mais uma vez, usa a digitalização da consciência. O chato desse episódio é a frustração. Com um tema que poderia ter sido explorado de maneira mais forte, o episódio tenta fazer uma espécie de “San Junipero” menos impactante.
Por meio de um aplicativo similar ao Tinder ou sites de relacionamentos como OkCupid, casais são reunidos com base em dados de outros relacionamentos. A ideia é chegar a um “match” de quase 100% de similaridade entre os dois, mas, para isso, as pessoas precisam passar por diversos relacionamentos imperfeitos. Mas o mais perturbador é que o aplicativo mostra a data de validade que aquele relacionamento irá durar. Podem ser 36 horas ou pode ser um ano ou mais.
A premissa é interessante e funciona bastante enquanto alterna a dinâmica entre os ótimos atores Joe Cole e Georgina Campbell. É bastante interessante acompanhar a história e refletir sobre tudo o que um relacionamento traz, desde as manias do outro, que encantam em um primeiro momento e irritam no próximo, até a busca por sexo casual, que preenche a necessidade por algum tempo e é saudável, para também começar a evidenciar um cansaço e vazio depois de uma certa maturidade.
Mas assim como “Arkangel”, o final é preguiçoso e apela para uma perseguição chatinha e uma reflexão óbvia. A última cena, entretanto, é bastante inteligente se imaginarmos como esse aplicativos e sites cruzam nossos dados para nos entregar a tal pessoa perfeita. É um bom episódio esvaziado por uma reta final chata.
Metalhead
Escrito por Charlie Brooker; dirigido por David Slade
Muita gente pensou, refletiu e disse que não entendeu nada. Está tudo certo porque não há muito o que entender. Num futuro apocalíptico, três pessoas estão paradas em um depósito para roubar um pacote importante para um outro personagem, que é apenas mencionado. Eles são atacados por uma espécie de cachorro robô e somente a mulher (Maxine Peake) consegue sobreviver e precisa fugir do robô extremamente ágil e violento.
Visualmente é um episódio lindo, em preto e branco e que lembra filmes de ficção científica antigos. Quase não há diálogos e o bom do episódio fica por conta da luta pela sobrevivência daquela mulher, que passa por situações absurdas para que o cachorro não a mate. É uma mulher fugindo de uma máquina. Nós até somos levados ao conteúdo do pacote que eles estavam tentando roubar, mas não é nada assim tão difícil de entender ou tão perturbador. Com uma premissa simples, “Metalhead” parece não querer fazer refletir, apenas contar uma história de sobrevivência. E é isso.
Black Museum
Escrito por Charlie Brooker, com partes adaptadas de “Pain Addict”, história escrita por Penn Jillette; dirigido por Colm McCarthy.
Uma jovem visita um museu criminal com artefatos tecnológicos e que explora outras histórias já contadas na série. Assim que terminei de assistir, concluí que este é o melhor episódio da temporada, mas depois de um tempo, não sei mais. Ironicamente, esse é o único episódio em que Charlie Brooker se utiliza de uma outra história já inventada. Com a mesma premissa de “White Christmas”, o último capítulo nos mostra diversos contos por meio desses artefatos. Todos eles poderiam ter sido episódios isolados da série e, bem, seriam interessantes.
O mais bacana ocorre mesmo no final, quando a história vira, na verdade, uma vingança e ainda traz surpresas nos minutinhos finais. O episódio todo é bem elaborado e amarrado e traz aquele clima de suspense e tensão que Black Mirror faz (ou fazia) muito bem. Foi meio que a premissa exata do que esperamos da série: o uso da tecnologia e suas consequências. Mas, no fim, também não é nada que vá garantir espaço na nossa memória.