Para quem escreve sobre televisão, é impossível ignorar o assunto mais debatido na semana passada: a reportagem publicada pela revista Piauí que trouxe detalhes sobre o escândalo e assédio moral e sexual envolvendo o humorista Marcius Melhem, coordenador da área de humor da Globo e responsável por vários projetos da emissora (dentre eles, a reformulação do Zorra Total em Zorra, a nova versão da Escolinha do Professor Raimundo, o quadro “Isto a Globo não mostra“, o saudoso Tá no Ar e o mais recente Fora de Hora).
A história já é conhecida do público há mais ou menos um ano, desde que foi trazida à público pelo jornalista Leo Dias, então colunista do UOL. O que a revista Piauí fez foi criar uma narrativa estruturada dos abusos, com cenas, sentimentos, locais e nomes de pessoas envolvidas. Para usar um termo da moda, daria para dizer que o impacto da reportagem mostra o poder do storytelling, ou seja, o quanto uma história, quando bem contada, mobiliza muito mais o público do que um relatório jurídico, por exemplo.
Ao lermos a reportagem, sentimos todos os constrangimentos infligidos à denunciante, a humorista Dani Calabresa, na relação que mantinha com seu então chefe, Melhem, envolvendo assédio sexual, mas também gaslighting (tentativa de fazer a vítima passar por louca) e muito boicote profissional (ameaças veladas e explícitas de que Dani não sucederia mais na Globo se batesse de frente com ele). Os constrangimentos, no entanto, não foram sofridos apenas por ela: o que sabemos, por meio do texto do repórter João Batista Junior, é o quanto essa “contaminação” entre a postura profissional e uma tentativa de contato pessoal (se é que assédio pode ser denominado assim) torna o trabalho nocivo não apenas para as pessoas envolvidas, mas para todos que estão em volta. Não por acaso, boa parte das fontes ouvidas por Batista fala com o repórter na condição de que não sejam nomeadas.
Julgo o episódio como importantíssimo à televisão, no sentido de trazer a oportunidade de que empresas como a Globo revisem a execução de suas políticas internas.
A reportagem é uma peça crucial para entendermos certas facetas de uma produção televisiva – que, por mais que traga em si elementos de natureza artística, é produzida dentro de um contexto industrial, ou seja, configura uma empresa como qualquer outra, com uma cultura organizacional que pode funcionar bem ou não. Se não sabíamos nada sobre estas situações (ocorridas, é bom lembrar, no seio de um núcleo profissional conhecido justamente por suas posturas progressistas, tolerantes, dando a entender que casos de assédio e machismo seriam inconcebíveis ali) há um ano, é porque havia uma regra bem obedecida por todos sobre “lavar a roupa suja em casa”, ou seja, de não deixar que os conflitos viessem à tona. Quem assistia ao Fora de Hora ou ao Zorra jamais desconfiaria que esses programas foram gerados em contextos que envolviam intrigas, abusos de poder e passada de perna.
Por isso mesmo, julgo o episódio como importantíssimo à televisão, no sentido de trazer a oportunidade de que empresas como a Globo revisem a execução de suas políticas internas, pois o que a reportagem mostra é um caminho tortuoso para que a denúncia de Dani Calabresa fosse levada a sério – o que só ocorreu, de fato, com a divulgação na imprensa. Além disso, espera-se que sirva para lidar com o assunto do assédio de forma mais séria, promovendo melhorias nas formas com que as mulheres são tratadas na televisão – tanto na tela quanto nos bastidores. Alguns episódios recentes mostram que o constrangimento às mulheres dentro das emissoras é recorrente. Cito, como exemplos, a denúncia de uma figurinista da Globo contra o ator José Mayer, o desrespeito com Simony durante uma cobertura no Carnaval na Rede TV!, o chute dado por Ratinho em sua assistente Milene Pavorô e a humilhação sofrida por Rita Cadillac no Programa do Porchat.
Recentemente, em uma live no canal da atriz Maria Zilda Bethlem, o ator Oscar Magrini mencionou um conselho que teria recebido no começo de sua carreira, da atriz veterana Cleyde Yácones. Ela teria dito que para ingressar na Globo teria que “participar do quartinho do PC”, referência a um suposto quarto onde ocorreria relações sexuais e uso de drogas. Trata-se de outra forma de se referir aos chamados “testes de sofá”, que dizem respeito à prática (supostamente, muito comum nos ambientes artísticos – pelo menos em outras épocas) de “troca” de favores sexuais por oportunidades na TV ou cinema.
Se o tal “quartinho do PC” hoje soa escandaloso, é porque muita coisa mudou desde então. Esta tônica do “descompasso” é o argumento presente na única entrevista concedida por Marcius Melhem até o momento para Mauricio Stycer e Dolores Orosco, no portal UOL. Na entrevista, ele se assume como “homem tóxico” e se desculpa por “comportamentos, atitudes que não cabem mais”. Em uma espécie de ato falho, o humorista deixa entender que estas atitudes abusivas um dia “couberam” aos homens – tal como o teste de sofá metafórico ao qual, a confiar na reportagem, ele submetia suas funcionárias.
Em suma, foi preciso sacrificar toda uma parte da melhor programação de humor das últimas décadas na TV para que, por fim, alguma atitude fosse tomada para que uma mulher recebesse algum acolhimento após ter sido violada pelo seu chefe. Pode parecer radical, mas se servir para que se dê um passo a mais rumo ao fim de uma cultura de abuso contra as mulheres, será de grande valia.