Na magistral série American Gods, que encena uma briga entre novos deuses americanos e deuses ancestrais já quase esquecidos, a televisão aparece representada como uma deusa Mídia (incorporada pela exuberante Gillian Anderson, que se tornou muito popular na série televisiva Arquivo X). Multifacetada, Mídia é sedutora e familiar, provocante mas acolhedora. Faz-se conhecer tanto como o que há de mais sensual (personificada como Marilyn Monroe com seu vestido esvoaçante) quanto o que há de mais confortável (como Lucy, a protagonista da comédia I love Lucy). Quando desaparece do conhecimento dos humanos, uma nova deusa retorna para substituí-la: é a Nova Mídia, representada por uma jovem oriental ultraconectada, toda descolada e superficial, de cuja boca saltam hashtags, curtidas e pedidos por uma maior largura de banda.
O texto impecável do escritor Neil Gaiman acerta em cheio nas metáforas, e pego carona nelas para falar um pouco sobre a “aniversariante” do dia, pois neste domingo (11 de agosto), segundo consta o calendário, foi o “dia internacional da televisão” (na verdade, é o dia de Santa Clara, reconhecida como a padroeira da TV). Esta então é uma data pertinente para celebrá-la, esta já velha mídia e, neste sentido, intento aqui colocar sobre ela um olhar sobre a permanência e a sua pertinência no cotidiano de tanta gente (por mais que tantos já tenham a odiado, ao longo da história, e tenham mesmo vaticinado o seu fim).
Há quase uma semana, meu único aparelho de televisão estragou e foi para o conserto. Admito que esta foi uma semana em que vivenciei um certo vazio, uma impressão de que faltava alguém dentro de casa – por mais que tudo que eu assisto nela possa ser assistido tranquilamente pela internet, via streaming, no celular ou no computador. No aperto, busquei transformar um laptop numa televisão fajuta, utilizando sites que transmitem emissoras em tempo real. Um grande esforço da minha parte no intento de simplesmente ver uma televisão. O que levou a refletir: por que então a “Velha Mídia” nos faz falta, mesmo tanto tempo depois de seu surgimento?
Penso que a questão mais importante que se insinua aqui diz respeito à relação que mantemos com os meios de comunicação de massa. Pelo menos desde as polêmicas ideias do canadense Marshall McLuhan, sabemos que as tecnologias não são meras maneiras de se repassar mensagens, mas sim extensões do homem, inclusive físicas (vide, por exemplo, o grau de dependência que temos com os aparelhos de celular e como nos sentimos desnudos quando estamos sem eles). McLuhan precisamente dizia: os meios são as próprias mensagens – no trocadilho em inglês, são messages/ massages, o que significa dizer que a relação com as mídias é, inclusive, sensória, afetiva, tal como uma massagem que atinge o físico e não apenas a mente.
A televisão representa não apenas uma janela para o mundo (o que ela evidentemente é), mas uma presença física, uma “cola” que serve de desculpa para nos mantermos próximos.
Daí decorre que a televisão representa não apenas uma janela para o mundo (o que ela evidentemente é), mas uma presença física, uma “cola” que serve de desculpa para nos mantermos próximos. Não por acaso, muitas vezes, quando as famílias estão juntas, há um aparelho de televisão no meio delas – e basta um pouquinho de atenção para constatar que, diferente de um celular, a TV costuma aproximar as pessoas em um debate e não a afastá-las. Numa obra muito instigante chamada Elogio ao grande público, o pesquisador francês Dominique Wolton pontuou: “a televisão é um formidável instrumento de comunicação entre os indivíduos. O mais importante não é o que se vê, mas o fato de se falar sobre isso. A televisão é um objeto de conversação”.
Mas se tudo isso que escrevo aqui tiver algum fundamento, como então explicar que este meio de comunicação tem sido, indubitavelmente, o mais temido e mais odiado pelas pessoas, alvo de todas as teorias conspiratórias e todos os medos acerca do seu poder? Penso que esse discurso da onipotência da televisão, na verdade, disfarça, ainda que inconscientemente, a crença na impotência do público, visto coletivamente como uma grande massa manipulável, incapaz de reagir ao que a mídia lhes diz.
Em outras palavras, quem odeia a TV – o mais abrangente de todos os veículos – acredita que o “povo” é uma vítima indefesa, pouco consciente. Há, portanto, um preconceito velado nesse pensamento, como se a camada mais economicamente desfavorecida da população fosse apática, alienável. Pego aqui novamente carona com a reflexão de Dominique Wolton: “a televisão não manipula os cidadãos. Evidentemente os influencia, mas todas as pesquisas provam que o público sabe assistir ás imagens que recebe. Não é jamais passivo. Nem neutro. O público filtra as imagens em função dos seus valores, ideologias, lembranças e acontecimentos”. Num exemplo rasteiro: engana-se que as senhorinhas ou os adolescentes que assistem às novelas introjetam aquilo que veem e saem invertendo os conhecimentos adquiridos pelas outras instituições. A TV, enquanto organismo vivo, produzido por pessoas, influencia e é influenciada na mesma medida.
É de conhecimento de todos que vivemos hoje a época dos veículos sob demanda, em que os serviços de streaming (como a Netflix, o Globoplay) e os produtos de nicho, que podem ser acessados a qualquer momento (como os podcasts), insinuam que os veículos “guarda-chuva”, como os jornais e a própria televisão, estariam de dias contados. Mas esta é uma leitura apocalíptica. Numa perspectiva darwinista, diria que a televisão permanece viva como nunca, dividindo seu espaço com as telas de celular, justamente por sua capacidade espetacular de reinvenção. E tal como um parente que às vezes nos irrita, ela continua por perto, e não conseguimos imaginar o cotidiano sem ela.