Acabamos de vivenciar um Carnaval bastante sintomático do tempo em que vivemos. Como um espelho, a festa refletiu basicamente todos os assuntos que povoam nossa vida cotidiana: desfiles repletos de comentários de tom político e social, mulheres empoderadas tomando as rédeas do discurso (e do seu próprio corpo) e muita reconsideração sobre o que pode ou não ser feito nessa época. Se por muitas décadas reconfiguramos o Carnaval como a época do “tudo pode”, hoje já sabemos – ou ao menos estamos em processo de saber – que, apesar disso, “não é não”.
Uma das novidades do Carnaval 2020, aliás, dizia respeito às mudanças de um dos mais tradicionais símbolos da transmissão televisiva trash, que é a cobertura do programa “Bastidores do Carnaval” da Rede TV!, agora capitaneado pelo novo contratado da emissora Léo Dias, um dos maiores nomes do país no ramo de jornalismo de celebridades. Saído do SBT, Dias anunciou uma reformulação na cobertura da emissora, que se tornaria mais moderada e familiar (há três anos, o episódio da modelo que agachou ao vivo e mostrou mais do deveria repercutiu negativamente ao canal). Uma estratégia arriscada, uma vez que a Rede TV! se tornou, nesta época do ano, conhecida justamente pelo papel cativo que representa nessa tal trash TV.
Mas, como disse no começo do texto, os tempos são outros. Tudo andou conforme o script anunciado, com exceção de um momento: a interação entre a cantora Simony, que atuava como “ombudsman” da cobertura, e o apresentador do SBT Dudu Camargo, de 21 anos. Numa performance constrangedora que lembrava a do patrão Silvio Santos, Dudu agiu de forma desrespeitosa com Simony, com conversas de tom sexual (em certo momento, fala que quer “procriar” com ela) e apalpando seus seios. Visivelmente embaraçada, Simony tenta manter o jogo de cintura e cortar a atuação do menino, ao mesmo tempo que se desdobra para manter algum bom humor.
Tudo aponta a um aspecto de uma cultura organizacional e do machismo introjetado nesse ambiente, além de todos os outros. Assim, parece até aceitável que um chefe (Nelson Rubens) negocie o corpo de uma mulher, pois são só business.
O episódio repercutiu bastante nas redes, coisa que não ocorreria se tivesse acontecido há alguns anos. Aquilo que seria decodificado como “coisa do Carnaval” se tornou, aos olhos de muitos, como algo que, se não inaceitável (posto que é Carnaval…), merece ser combatido.
Além disso, a cena merece ser comentada a partir das sutilezas que a cercam. Listo algumas:
– Para começar, valeria destacar quem são os personagens envolvidos. No caso, a cantora Simony, estrela infantil que estourou como componente do grupo Balão Mágico, nos anos 80, e depois despontou a uma carreira vinculada às celebridades trash (sua história foi mais ou menos contada na série Samantha!, da Netflix). É, pois, uma “celebridade lado B”, e há uma certa convicção velada de que ela, por sua trajetória, estaria apta a participar de constrangimentos desse tipo, como apalpadelas e piadas de duplo sentido (afinal, Simony já posou nua várias vezes!, pensaria alguém em seu íntimo, além de ter aceitado dar um selinho em Dudu). Em parte, todo o ocorrido me lembrou outra cena: a humilhação sofrida por Rita Cadillac no Programa do Porchat, há alguns anos. Quase como se fosse “merecido” que Simony sofresse algo assim.
– Na outra ponta, outra celebridade do mundo bizarro da televisão, um apresentador mirim que ficou famoso por falar de notícias sem ser jornalista. Na cena, ele parece emular o tipo de postura mantida por Silvio Santos durante seus programas, quando atua como um idoso autorizado a dizer qualquer coisa (Dudu, como um espelho, seria o moleque sem noção), representando os desejos mais íntimos de uma boa parte da nação. Mas tem algo de opressor também no que vemos: conforme declaração de seu empresário ao UOL, a performance forçada de Dudu teria a ver com uma tentativa de não parecer gay, como se isso fosse demérito. Por isso, a pessoa que oprime, o assediador, também é oprimido por uma esperada postura de masculinidade (vale lembrar, inclusive, que Dudu é um recém adulto, franzino e bem longe do estereótipo do “macho”).
– Na terceira ponta, há algo que precisa também ser destacado: a postura do apresentador Nelson Rubens, o comandante deste navio, que “oferece” o corpo de Simony ao entretenimento dos espectadores da Rede TV!. Talvez aqui esteja o buraco mais profundo. Como destacou Luiza Sahd, colunista do UOL, tudo aponta também a um aspecto de uma cultura organizacional e do machismo introjetado nesse ambiente, além de todos os outros. Assim, parece até aceitável que um chefe (Nelson Rubens) negocie o corpo de uma mulher, pois são só business. E ela não reage (ao menos não como deveria, de forma incisiva – note que Simony nunca para de sorrir) pois já está condicionada a aceitar que é assim mesmo que o mundo gira, e se uma mulher quer continuar empregada, precisa se submeter a isso.
Deste modo, por mais deprimente que seja tudo o que vimos, tem algo de pedagógico. Sinal dos tempos que isso aconteça na TV ao vivo, e justamente no principal berço da trash TV nessa época do ano. Pois é Carnaval, e como diz aquela musiquinha, “no Carnaval, todo mundo pode tudo” – mas só para quem quiser.