A questão das migrações é um dos temas do momento. Atualmente, vivemos um período de intensos fluxos migratórios em muitos países, decorrente de diversos fatores (como guerras, crises econômicas, desastres naturais, perseguições, desilusão política, etc.), o que torna esta discussão bastante urgente. Quase sempre, ao sair de seus territórios de origem em busca de uma nova casa, [highlight color=”yellow”]os imigrantes costumam sofrer uma série de preconceitos nos países em que se instalam[/highlight] (embora, é bom ressaltar, este preconceito é seletivo: o europeu que se muda para o Brasil certamente recebe menos olhares tortos do que o haitiano, por exemplo).
Mas o que me interessa aqui é trazer essa discussão à televisão: [highlight color=”yellow”]como os programas brasileiros costumam representar essas pessoas que aqui se instalam?[/highlight] Mais do que isso: sendo o Brasil um país marcado pela miscigenação (somos todos, em alguma medida, imigrantes), como a TV brasileira lida com a abordagem das culturas de outros países? Obviamente, esta é uma discussão ampla e que envolve uma análise mais aprofundada, que extrapolaria os limites e as possibilidades dessa coluna. Parte dessa imagem dos imigrantes é assentada pelos produtos da ficção: já tivemos tantas novelas que mostraram indianos (Caminho das Índias), italianos (Terra Nostra), armênios (Dona Armênia em Rainha da Sucata), japoneses (Sol Nascente), marroquinos (O Clone), portugueses (Novo Mundo), numa lista infindável.
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Neste texto, não pretendo falar especificamente sobre a abordagem da ficção. O mote é um recente episódio do programa Estrelas, apresentado por Angélica, o qual opera como um sintoma perfeito de como, por vezes, [highlight color=”yellow”]o preconceito com o outro surge travestido de valorização e respeito[/highlight]. Falo do programa gravado no bairro da Liberdade, em São Paulo, localidade que talvez seja o mais famoso reduto brasileiro da comunidade japonesa no Brasil. Na ocasião, Angélica esteve no conhecido bairro acompanhada pelos cantores sertanejos Paula Fernandes e a dupla Marcos e Belutti.
A intenção era levar as celebridades para realizar um passeio no bairro asiático, em uma espécie de matéria leve e divertida, condizente com o tom de colunismo social do Estrelas. Para tanto, todos os “clichês” da Liberdade foram visitados e exibidos: os restaurantes, o pastel de feira, a indumentária típica, os quimonos, os karaokês, as lojas de bugigangas japonesas. A proposta de diversão e mesmo de homenagem aos japoneses migrados ao Brasil esconde, no fundo, [highlight color=”yellow”]uma sensação de escárnio com a cultura nipônica[/highlight] – que é sempre destacada como a cultura do outro, como se esses descendentes de imigrantes não fossem, eles mesmos, brasileiros.
O mais grave da abordagem do ‘Estrelas’ seja que ele acaba por promover uma visão “domesticada” da cultura japonesa e, por isso mesmo, um olhar reduzido e desrespeitoso deste país.
Com bastante perspicácia, o canal Yo Ban Boo (assista abaixo) gravou um vídeo em que praticamente desenha como o episódio ajuda a reduzir a cultura japonesa a uma caricatura de si mesma. Os roteiristas do Estrelas conseguem reiterar todos os lugares-comuns que tendem a ser lembrados quando falamos dos japoneses: as piadas sobre nissei, sansei e não sei; a ideia de que idosos japoneses são “fofinhos” e, por isso, inofensivos; a imitação do sotaque dos asiáticos e a lembrança sobre os supostos elementos tradicionais de sua cultura.
Em suma, como o vídeo do Yo Ban Boo lembra, há um discurso velado – e provavelmente inconsciente – que trata os descendentes de japoneses nascidos no Brasil como estrangeiros em seu próprio país (uma matéria no site BuzzFeed descreve, didaticamente, a análise feita pelo canal).
Mais do que isso, eu acrescentaria: talvez o mais grave da abordagem do Estrelas seja que ele acaba por promover uma visão “domesticada” da cultura japonesa e, por isso mesmo, [highlight color=”yellow”]um olhar reduzido e desrespeitoso deste país[/highlight]. O pior problema, no entanto, é que isso ocorre de uma forma que se reconhece como carinhosa, acolhedora dessa cultura. Sentimo-nos homenageando os povos cada vez que reconhecemos (e representamos) os japoneses como educados, os italianos como acolhedores, os alemães como disciplinados, numa lista que seguiria infinitamente.
Ora, mas estes não são elogios à cultura do outro?, perguntaria algum leitor. Ainda que elogiosos, são reducionismos que criam generalizações imprecisas sobre um país e colocam indivíduos concretos como caricaturas malfeitas. [highlight color=”yellow”]Por isso mesmo, são nocivas.[/highlight] Afinal, basta lembrar que não é por sermos brasileiros que todos gostamos de samba, futebol e carnaval, nem somos alegres e festivos o tempo todo, apenas para ficar em um exemplo. Além disso, conforme já mencionado, nisseis e sanseis são brasileiros, e não japoneses – e certamente não ganham nada ao serem mirados por um olhar condescendente. Ao ser veiculado na principal emissora do país, episódios como o do Estrelas conspiram para perpetuar visões deturpadas acerca dos povos que formam o Brasil.
E como é possível fugir disso? Talvez um primeiro caminho seja parar de separar os imigrantes dos brasileiros, colocando-os sempre como “o outro”. Voltando ao ramo da ficção, este é um debate lindamente enfrentado na série Master of None, disponível na Netflix. Idealizada e protagonista pelo ator e produtor Aziz Anzari, que é um norte-americano descendente de indianos, a série reivindica o direito de que todos os “diferentes” – sejam asiáticos, latinos, gays, negros, pessoas com deficiências – não sejam lembrados por essas características, mas sejam abordados como os indivíduos que são. No dia em que um programa como o Estrelas conseguir não lembrar o tempo inteiro que um entrevistado é japonês, é possível que haja algum avanço.