No dia 20 de novembro, a Rede Globo levou ao ar um programa especial, que celebrava o Dia da Consciência Negra. Dirigido por Lázaro Ramos, Falas Negras parecia um formato inusitado para a TV: pequenos esquetes curtos, interpretados por atores em monólogos apresentados a uma câmera, com cenários escassos, em uma linguagem que lembrava muito mais a do teatro. Embora muito bem feito, o foco do especial estava – como o próprio título entrega – nas falas de quem elas veem: as representações de 22 pessoas cujas vidas e vozes foram fundamentais na história do povo preto.
Tragicamente, o especial foi ao ar um dia após do assassinato de um homem negro, em uma situação que até agora levanta discussões sobre suas relações com o racismo estrutural no Brasil. Não obstante, Falas Negras fez jus ao tom que circula no país – um ar denso, de revolta pujante, sorrateiramente vindo à tona a cada vez que um novo episódio de racismo é visto massivamente. Por isso, fez todo o sentido que a maior emissora brasileira desse espaço para que um negro, Lázaro, idealizasse e dirigisse esse programa especial, no qual traz luz ao trabalho de 22 atores que nem sempre têm seu talento reconhecido.
Esteticamente, Falas Negras remete ao cinema “franciscano” de Eduardo Coutinho, o saudoso diretor de documentários. Ou seja, embora todas as falas tenham sido gravadas em estúdio, o cenário era relativamente escasso e a iluminação escassa, trabalhando em tons de claro e escuro e enquadramentos inusitados (em alguns momentos, os rostos dos atores estão cortados ou então eles falam de costas para a câmera). Tudo aqui grita: preste menos atenção nos elementos tangenciais e apenas preste atenção no que eles dizem.
O resultado, como já reverberado em várias análises, é muito impactante. A começar pela escolha dessas vozes, unindo nomes mais conhecidos (como Martin Luther King, Nelson Mandela, Malcolm X, Nina Simone, Muhammad Ali), a representantes acadêmicos (como o geógrafo Milton Santos e a antropóloga Lélia Gonzalez), sem deixar de enfocar as raízes (começa, por exemplo, lá no século XVI, com Nzinga Mbandi, rainha do Reino do Dongo e Matamba). A em curadoria das vozes é extremamente bem-feita, e envolve tanto a escolha das pessoas quanto o recorte em suas falas – tentando trazer reverberação às ideias centrais naquilo que disseram e viveram.
Mais uma vez, volto a emprestar uma analogia com Eduardo Coutinho, em especial ao filme Jogo de Cena, em que atrizes emprestam a emoção das histórias de mulheres reais e a interpretam frente ao diretor, em uma espécie de ensaio dialógico. O que vemos é uma quantidade de atores entregues às personas que incorporam, em visível emoção que se explicita no close dado aos seus rostos – afinal, falam de sua história e de seus ancestrais, invisibilizados pelas narrativas históricas durante muito tempo. É muito comovente a interpretação da atriz Tatiana Tiburcio a Mirtes Santana, mãe do menino Miguel, que morreu este ano após cair de um prédio de luxo em Recife no qual sua mãe trabalhava como faxineira. Todos ali homenageiam a si mesmos e às lutas dos negros – e por isso, é mais que louvável que este especial se concretize em uma produção feita prioritariamente por pessoas negras.
A verdadeira potência do especial Falas Negras está nos discursos que ele carrega em exibição nacional. Talvez a escolha mais óbvia fosse recortar falas mais palatáveis, ao estilo de tolerância do slogan de “somos todos iguais”, mas a opção não foi essa.
De todo modo, acredito que a verdadeira potência do especial Falas Negras esteja nos discursos que ele carrega em exibição nacional. Talvez a escolha mais óbvia fosse recortar falas mais palatáveis, ao estilo de tolerância do slogan de “somos todos iguais”, mas a opção não foi essa. Em um mundo em que a revolta quanto às discriminações raciais explode cotidianamente (o que leva uma boa parte das pessoas a questionar sobre a legitimidade desta raiva e categorizar aqueles que a expressam como “vândalos”), Lázaro Ramos corajosamente leva ao ar falas incômodas. Por exemplo: Malcolm X (interpretado por Samuel Melo) diz que “é criminoso ensinar um homem de não se defender quando ele é vítima constante de ataques. Se você não tomar cuidado, os jornais vão fazer odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar as pessoas que estão oprimindo”. Já Muhammad Ali (vivido por Babu) joga na cara do público: “brancos e negros não são irmãos. Um irmão não amarra outro irmão num cavalo e arrasta. Irmão não queima um irmão, não mata um irmão, não mata mulheres grávidas, um irmão não faz um outro irmão escravo por quatrocentos anos. A única razão para esta câmera estar em mim é porque eu sou o maior lutador do mundo. Se não, seria só mais um negro”.
Por fim, vale destacar que o formato fragmentado, isolando cada personagem, é inteligente, pois favorece o compartilhamento em redes sociais – desta forma, traz possibilidades que essas mensagens sigam reverberando e causando desconforto em que assiste.