Como se faz um programa de televisão? Alguns talvez falem sobre tecnologias sofisticadas, em qualidade de imagem e som. Outros talvez pensem em produções grandiosas, em muitas pessoas envolvidas e muito dinheiro investido. Há, quem sabem, os que lembrarão da necessidade de longas e detalhadas pesquisas para tentar entender, afinal, o que deseja o grande público. Mas, por vezes, alguns formatos televisivos sucedem justamente pela simplicidade de sua proposta. Em certas atrações, apenas chegar a uma boa ideia – e a busca por aquilo que é mais antigo e essencial no homem, o ato de contar uma história – é mais do que suficiente. No ar desde 2011 no canal GNT, da Globosat, o programa Chegadas e Partidas traz uma premissa simples, a de abordar pessoas aleatórias no intuito de ouvir alguma coisa que tenham para contar.
Até aí, talvez não haja grandes novidades, posto que a arte da conversação é tema de uma vasta quantidade de formatos televisivos. A grande sacada está no cenário em que isto se dá: o aeroporto, entendido aqui como local simbólico, limítrofe, uma “porta para o futuro”, na definição empregada pela apresentadora Astrid Fontenelle em um dos episódios. Entre os que chegam e os que vão, o aeroporto, espécie de não-lugar que pertence a todos e a ninguém, torna-se espaço para reflexão sobre a própria vida, sobre como se chega – e se conta – até aqui e como se pretende fabular a própria história daquele momento em diante. No aeroporto ou na rodoviária (que, aliás, seria um ótimo espaço para uma nova temporada, e traria outra discussão possível a partir das histórias ali engendradas), cruzam-se e descruzam-se as existências dos que partem em busca de novas narrativas.
Eis então a matéria-prima deste muito simples e primoroso programa (que é, na verdade, uma franquia gerada a partir da atração holandesa Hello Goodbye): quais os caminhos escolhidos por cada um para significar a própria trajetória? Quais as tintas, as cores, as trilhas que você (ou a vida, ou o destino, ou Deus, o que achar melhor) percorre para construir a sua narrativa? Como bem citava o grande documentarista Eduardo Coutinho, a história contada sobre o passado é sempre mil vezes melhor que o passado em si. Neste sentido, o que interessa em Chegadas e Partidas é a síntese de si feita por cada uma das pessoas que aceita conversar com Astrid.
A abordagem feita pela apresentadora é branda, modesta, tal como deve ser, pois o sucesso do encontro depende exclusivamente da empatia que conseguirá criar com o entrevistado. Dentre os presentes no aeroporto que esperam alguém ou preparam-se para sair, Astrid tenta decodificar algum signo que facilitará o contato, algum elemento que, aparentemente, conta uma história. Tal como um homem que segura um balão, um idoso que chora, uma senhora que segura um vaso de pimentas, o nervosismo de uma mãe, o tempo de espera silenciosa de uma família que contempla a chegada dos viajantes. Esta é a porta da entrada para que ocorra o encontro entre alguém propenso a narrar e alguém predisposto a ouvir.
Entre os que chegam e os que vão, o aeroporto, espécie de não-lugar que pertence a todos e a ninguém, torna-se espaço para reflexão sobre a própria vida.
E é nessa espécie de comunhão entre estranhos que a mágica acontece. Frente a alguém interessado na narrativa, surge uma poesia do cotidiano nas vozes das mais variadas pessoas. “Eu vi transformação. Parte de mim eu não sei onde perdi. A outra metade está aqui”, conta a mãe que espera o filho vindo do Irã, onde mora o ex-marido que ela abandonou ao saber que ele, por direito, teria cinco mulheres. Acostumada à espera, ela teme a vida adulta do filho, quando poderá escolher se quer viver no Irã com o pai (o “dono da prole”) ou a mãe no Brasil. A dor e a alegria do ordinário da vida, é este o conteúdo de Chegadas e Partidas.
Nesse sentido, a presença de um interlocutor sensível à fala do outro se torna a ferramenta essencial para que o formato dê certo. Astrid Fontenelle desempenha bem o papel: tem um olhar curioso ao outro, aparenta facilidade na abordagem, revela-se interessada nas histórias. Talvez apenas peque por um certo excesso de interferência, pois não resiste à tentação de significar algumas narrativas. Quando uma moça que está viajando para Europa revela que tem planos de adotar uma criança com o marido quando retornar, Astrid quer saber o porquê – afinal, não seria esperado que um casal “jovem e saudável” adote, ao invés de ter o próprio filho. Ela então conta que fez uma promessa à mãe, uma senhora negra que cresceu em um orfanato e foi adotada por uma família para trabalhar, entre aspas. “Que bom que você colocou aspas, assim eu não preciso colocar”, interfere Astrid, como se o espectador não pudesse chegar a certas conclusões por si mesmo. Ou, por lado, ao significar a história de alguém que não conhece, acaba inevitavelmente por reduzi-la, estigmatizá-la.
Ainda que falte ao programa um certo “franciscanismo” narrativo típico dos documentários de Eduardo Coutinho, ele inevitavelmente emociona pela beleza das falas e dos sentidos colocados às suas vidas por todos os entrevistados. A emoção genuína do encontro é ainda explorada por um recurso recorrente: enquanto Astrid e sua equipe aguardam o ente querido que chega da viagem, a câmera registra o rosto de várias pessoas que aterrissam, criando um suspense interessante ao carregar o espectador junto à espera.
Se, como postula a jornalista Janet Malcolm, narrar a si mesmo pressupõe a ilusão de ser incrivelmente extraordinário, Chegadas e Partidas reitera esta doce fantasia e reivindica magnitude e permanência à pequena grande história que cada um de nós carrega.
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