Já comentei aqui quando escrevi sobre a primeira temporada de Halt and Catch Fire (leia aqui): a AMC talvez seja a maior concorrente da HBO no quesito grandes shows. Se a HBO tem em Game of Thrones seu carro chefe impulsionador, de forma que consegue investir em outras obras-primas da teledramaturgia, a AMC faz isso com The Walking Dead – ainda que TWD tenha amadurecido com as reviravoltas em sua trama.
Para quem caiu aqui de paraquedas, a primeira temporada de Halt and Catch Fire acompanhou as conturbadas vidas de Joe MacMillan (Lee Pace), Gordon Clark (Scoot McNairy) e Cameron Howe (Mackenzie Davie). Ambientada na Detroit dos anos 1980, durante o boom tecnológico que resultou no surgimento de grandes empresas, como Apple e Microsoft, e no fortalecimento da eterna gigante IBM, a série ganhou uma segunda temporada mesmo com números relativamente pouco expressivos de audiência no ano anterior – um pecado, tamanha a riqueza de sua trama e seus subtextos.
Desta vez, Joe, Gordon e Cameron estão em lados completamente opostos. Cameron colocou todas suas fichas na criação da Mutiny, a empresa com foco em games online. Ela inicia a segunda temporada trazendo para trabalhar consigo a esposa de Gordon, Donna Clark (Kerry Bishé, estonteante neste ano). Com a falência da Cardiff Electric, pela qual ele ganhou uma boa grana, Gordon está em casa, precisando reencontrar uma motivação para seguir em frente. Já Joe está em um novo relacionamento. No caso dele, saiu sem um tostão sequer da Cardiff, com sua reputação abalada, motivo pelo qual encontra dificuldades em se recolocar no mercado de trabalho.
É Donna um dos principais personagens desta temporada. Christopher Cantwell e Christopher Rogers, os criadores da série, aprofundaram o papel de Bishé. Se ela terminou a primeira temporada querendo abrir as asas, na segunda temporada a personagem de Kerry Bishé torna-se coprotagonista. Ela não ganha importância apenas por ser uma personagem feminina forte, mas pelo debate que traz consigo: mulheres tomando as rédeas das próprias vidas, abandonando o seio da casa (leia-se deixando de cuidar dos filhos) para serem chefes e líderes no mercado profissional. Sem dúvida que isso não vem facilmente, logo, Donna vive boa parte da segunda temporada de Halt and Catch Fire em conflito, interno e com o marido.
Ela não ganha importância apenas por ser uma personagem feminina forte, mas pelo debate que traz consigo.
Essa inversão de papéis fica latente durante os 10 episódios, sendo motivo para inúmeras rusgas entre o casal. Agora, o que realmente incomoda Donna é o fato de sentir que continua sendo “a mãe”, a “dona de casa”, tamanha a imaturidade de Cameron na liderança da Mutiny. Esse conflito entre duas mulheres fortes, mas com visões distintas de sua própria feminilidade, é uma das forças do texto.
Isso significa que a força das duas sucumbiu os personagens de Pace e McNairy? De forma alguma. O fato de estarem “por baixo” exige de seus personagens uma entrega maior, e nada relacionado com uma crise masculina de ver mulheres próximas sendo bem-sucedidas. Na verdade, a crise deles é de identidade, algo quase religioso, como se precisassem a todo instante brincar de Deus, estarem com frequência criando algo, de forma a sentirem-se úteis. Para tanto, movem suas peças num jogo de xadrez mental que os leva à beira da loucura, da insanidade. O refúgio de ambos acaba sendo em mulheres, mas não no amor ou no carinho delas, e sim na força com que elas travam batalhas diárias. Elas passam a ser exemplos de condução profissional e postura na vida pessoal, e isso, amigos, é uma virada nos padrões comuns dos shows que faz muita diferença.