Não queria escrever sobre A Força do Querer tão cedo novamente. Sei que a novela das nove da Rede Globo está sendo tema de muitos textos dessa coluna e que tivemos acontecimentos e estreias na TV que renderiam boas análises. Mas essa semana não consegui fugir. Houve um tema em específico que chamou totalmente a atenção, ganhou as redes sociais e repercutiu até em outros programas da emissora. Não tive como ignorar, precisava falar sobre Ivana.
O drama da personagem de Carol Duarte chegou ao auge justamente no capítulo 100 da novela, exibido na última quinta-feira (27). Costurada com carinho e cuidado por Gloria Perez desde o primeiro capítulo, a história de Ivana finalmente deu um passo grandioso na trama. Após ter sua primeira experiência sexual com Claudio (Gabriel Stauffer), esperando que o ato a ajudasse a viver em paz com seu corpo (veja aqui), a jovem seguiu confusa, terminou com o namorado e chegou ao ápice de seu conflito interno: com as malas prontas, ela desiste de viajar para São Francisco (EUA), sai de casa sem nada e vai direto para um bar, onde conhece Tereza (Tarso Brant), cuja trajetória a fez entender que, assim como ele, é transgênero (veja aqui).
Depois de ouvir do rapaz que antes da transição de gênero ele prendia os seios com faixas e se batia olhando no espelho, drama idêntico ao que vive, Ivana foi para casa pesquisar sobre o assunto na internet e viu vídeos de mulheres que se trataram com hormônios para ficar com aparência masculina (veja aqui). O capítulo terminou com Ivana diante do espelho do quarto – o mesmo que refletiu a cena em que a menina socou os próprios seios, parte do corpo que não conseguia aceitar –, desta vez para um encontro com ela mesma. “Eu entendi”, disse, entre a dor e o riso (veja aqui).
As cenas emocionaram pela sensibilidade do texto e pelo excelente trabalho da atriz. Desde sua primeira aparição, a personagem tem sofrido por não se identificar com o próprio corpo, vivendo em um constante mal-estar, alimentado por um sentimento de desencaixe no mundo. Não podemos negar que a rejeição e a inadequação que um trans deve sentir estão muito bem representadas. Carol Duarte é sem dúvida uma grande revelação, um presente que A Força do Querer está trazendo para a teledramaturgia.
Porém, mesmo achando a sequência bem atuada e de uma delicadeza emocional linda, não posso deixar de observar que é preciso alguma condescendência para aceitar a história da maneira como ela está sendo construída. Ivana é uma jovem de classe alta, estudou em boas escolas, frequenta uma psicóloga e tem acesso a todo tipo de informação: É preciso “voar” para considerar normal que somente agora a personagem tenha descoberto tudo sobre o assunto.
Mas tudo bem. Apesar dessa assimilação de Ivana ter acontecido tardiamente, o enredo apresenta uma liberdade artística adequada e que não compromete o tratamento do assunto até o momento. Afinal, a história de Ivana é a grande ação de responsabilidade social adotada por Gloria Perez nesta novela e, sendo assim, a autora tem sido absolutamente cautelosa em sua abordagem: ela está tratando do assunto sem a intenção de chocar, buscando cumplicidade e compreensão do espectador. E tem obtido mérito.
E Ivana não é a única na trama que levanta o debate sobre identidade de gênero: temos também Nonato, um travesti vivido pelo ator Silvero Pereira, que é o responsável por explicar de maneira didática as diferenças entre os dois personagens. Como o tema ainda possui certo tabu, muitas pessoas têm várias dúvidas sobre as questões LGBT e não sabem a diferença entre as nomenclaturas. É um tópico importantíssimo de ser trabalhado, especialmente pela falta de informação geral a respeito e por conta dos preconceitos envolvidos. Acredito que a novela está dando uma valiosa lição, que poderá ser útil para muitos.
A história de Ivana é a grande ação de responsabilidade social adotada por Gloria Perez nesta novela e, sendo assim, a autora tem sido absolutamente cautelosa em sua abordagem.
Outro assunto que está sendo trabalhado e explicado no texto é a diferença entre identidade de gênero e sexualidade. Em alguns capítulos atrás, o personagem de Silvero deu a seguinte explicação: “Gênero não tem nada a ver com sexualidade. Gênero é o que você é: se é homem, mulher, travesti, transgênero. Sexualidade é aquilo que você gosta. Se você gosta de homem, de mulher, das duas coisas ou de coisa nenhuma. São coisas completamente diferentes, que não precisam andar juntas”.
Na trama, Ivana também se confundiu e por isso acreditou que seu namorado Cláudio iria fazê-la se sentir melhor com o próprio corpo, mas isso não ocorreu, já que sua questão está relacionada ao gênero e não à sexualidade. Entretanto, mesmo descobrindo se enquadrar no gênero masculino, ela continua se sentindo atraída pelo ex-namorado, mostrando que nascer no corpo errado não influencia na orientação sexual. Ela será definida como trans homem gay: um homem gay que nasceu no corpo de mulher.
A partir de agora vai começar outra etapa do drama, envolvendo a transformação da jovem, com todos os sofrimentos físicos e psicológicos envolvidos no processo. Ela também terá que contar para a família e, pelo que conhecemos de sua mãe Joyce (Maria Fernanda Cândido), podemos imaginar que não vai ser fácil. Nos resta continuar acompanhado a trama e torcer para que a incrível história de Ivana tenha o final feliz que ela merece.