Sempre me parece curiosa a generalização que fazemos ao falar das empresas como um todo, um organismo homogêneo. Qualquer um que tenha trabalhado em uma sabe que dentro de toda e qualquer empresa, por menor que seja, há um conjunto de vozes e forças que brigam, discordam, conspiram – e que cabe para os profissionais da comunicação interna controlar para que isso nunca venha à tona.
Dentro de uma empresa de comunicação, não seria diferente. Por isso, cada argumento que generaliza uma instituição – do tipo “Globo mente”, “Record é TV institucional do governo”, “SBT não valoriza jornalismo” – fecha os olhos para a imensa complexidade que habita em cada uma das emissoras. Talvez o que diferencie as empresas umas das outras (e que, por consequência, separe as grandes e as menores) é como elas lidam com a desconfiança que as cerca, e de que forma conseguem mesmo rentabilizar esta má fama.
Foi isso que me veio à mente ao assistir ao quadro “Isso a Globo não mostra”, exibido no Fantástico nas duas últimas semanas. A nova atração nada mais é que uma espécie de edição de conteúdos diversos da própria Globo com fins cômicos e críticos. No primeiro episódio (que dura cerca de cinco minutos), houve uma compilação de erros diversos (Ana Maria Braga errando nome de convidados, por exemplo), montagens criativas (um chamado “Desconversa com Bial”, paródia do programa original, editou vários segundos de silêncio entre o apresentador e Galvão Bueno e exibiu uma não-entrevista) e sutil acusação política (em vários momentos: ao mesclar Flavio Bolsonaro com uma imagem de plantação de laranjas, do Globo Rural, ao mostrar a famosa morte de Odete Roitman em Vale Tudo editada com um liquidificador ao lado, numa clara referência à fala do ministro Onyx Lorenzoni e ao tirar sarro de Jair Bolsonaro fundindo falas suas no Fórum Econômico Mundial em Davos com a trilha sonora de Seinfeld, clássico programa de comédia).
Simples na execução e complexa na proposta, o quadro “Isso a Globo não mostra” evidencia, em suma, algumas coisas interessantes. Há várias mensagens subentendidas em um mero quadro – não por acaso, elaborado por uma equipe afiada do humor, que une profissionais da equipe do programa Tá no ar e do site Sensacionalista. A ideia inicial é gerar uma nova narrativa, feita pela própria Globo, em que fale mal de si mesma (pois ri dos seus próprios erros) e introjeta como sua a crítica feita a ela pela população (pois assume como sua a frase “isso a Globo não mostra”, alimentada há décadas por aqueles que odeiam a grande emissora e a enxergam sob uma agenda oculta de interesses escusos).
Em outras palavras, há uma espécie de inteligente “autofagia” no quadro. É como se a empresa dissesse: assumo toda a desconfiança colocada sobre mim por muito tempo e torno minha a crítica. Vale lembrar que isso não é novidade para a Rede Globo: a crítica controlada a si mesma fundamenta a premissa do Tá no ar, um grande sucesso da emissora, e mais especificamente o esquete do programa do Militante Revoltado, um rapaz de Pernambuco que personifica em si todas as teorias da conspiração contra a “dona Rede Globo” (mais uma vez, uma generalização da empresa enquanto organismo coeso, um monstro poderoso que precisa ser combatido).
Há uma espécie de inteligente ‘autofagia’ no quadro. É como se a empresa dissesse: assumo toda a desconfiança colocada sobre mim por muito tempo e torno minha a crítica.
Há outra mensagem, que dialoga diretamente com as redes sociais: em tempos de popularização das ferramentas digitais, tudo pode ser dito. É possível fazer Ana Paula Araújo conversar com uma cadeira vazia no Bom Dia Brasil, ou Suzana Vieira cantar desafinadamente para os jurados do The Voice Brasil – basta saber mexer minimamente nos aparatos tecnológicos. De modo sutil, há aqui um ataque aos seus próprios críticos, que veem a Globo emitir uma quantidade de mensagens nas entrelinhas de suas reportagens e conteúdos.
Além disso, “Isso a Globo não mostra” não deixa de ser a tentativa de fazer um grande meme oficial que seja compartilhado da mesma forma que os “orgânicos”, vindos da população. A edição do apresentador Tadeu Schimdt tocando Guns n’ Roses no cavaquinho lembra, por exemplo, o vídeo muito conhecido que mescla (sem nenhuma razão aparente) um momento do programa Casos de Família, do SBT, com a música “Sweet Dreams”, do Eurythmics. Ambas as cenas, totalmente nonsense, não fazem qualquer sentido, e por isso mesmo são engraçadíssimas.
E por fim, diria que o quadro do Fantástico também configura justamente como uma ostentação de qual é, de fato, o grande poder da rede Globo: sua capacidade (financeira, mas não só isso) de atrair para si, como uma grande sereia midiática, todos os melhores talentos e cabeças pensantes que, inclusive, representam todos aqueles que abominam a própria empresa. Mesmo o que há de mais subversivo ou underground (como a nata do humor vindo da internet, por exemplo, o programa Choque de Cultura, que recentemente estreou um quadro na emissora) não fica de fora dessa grande emissora – certamente complexa e repleta de profissionais críticos, mas que consegue, de forma muito inteligente, transformar a sua própria desconfiança em bons produtos.