Quase um mês após sua estreia, Dona de Mim, de Rosane Svartman, começa a revelar não apenas os contornos de sua trama, mas os contornos — talvez mais sutis, porém decisivos — do próprio lugar que ocupa na dramaturgia contemporânea da TV Globo. Alocada na complexa faixa das 19 horas, um território historicamente ambíguo entre o entretenimento de fácil assimilação e a experimentação simbólica com tintas leves, a novela parece trabalhar em tensão permanente entre expectativa e invenção, entre fórmula e subversão.
Sucedendo a surpreendente Volta por Cima, que reconfigurou a narrativa clássica de ascensão e queda com acentuado frescor formal, Dona de Mim não busca o impacto imediato. Ao contrário, sua estratégia é a da sedimentação: aposta em camadas afetivas e em pequenas epifanias dramáticas para construir vínculos com o público. Seu maior trunfo, até aqui, reside na protagonista, Leona (Clara Moneke, ótima atriz e um poço de carisma) — uma jovem preta, periférica, cuja presença em cena não apenas organiza o enredo, mas reconfigura a gramática sentimental da novela. Carismática, sim, mas também moralmente complexa e atravessada por contradições que a colocam em choque com os arquétipos heroicos da emissora.
A trama se desenvolve quando Leona aceita um emprego como babá na mansão da influente família Boaz, proprietária de uma tradicional marca de lingerie. Lá, ela conhece Sofia (Elis Cabral), uma criança de 8 anos adotada por Abel Boaz (Tony Ramos) após a morte de sua mãe biológica, Ellen (Camila Pitanga), ex-funcionária da empresa. A relação entre Leona e Sofia torna-se o núcleo emocional da novela, explorando temas como maternidade não biológica, superação e construção de laços afetivos.
Paralelamente, a narrativa aborda as tensões internas da família Boaz, incluindo disputas pelo controle da empresa, questões de identidade e representatividade nas campanhas publicitárias, e conflitos geracionais. A novela também destaca a vida no bairro de São Cristóvão, da zona norte do Rio, retratando sua efervescência cultural e os desafios enfrentados por seus moradores.
Dona de Mim: empoderamento feminino
Dona de Mim propõe uma reflexão sobre o empoderamento feminino, a importância das redes de apoio e a busca por autonomia em meio às adversidades da vida cotidiana.
O texto de Svartman, que já se destacou por diálogos vivos e engajamento com pautas contemporâneas, em Bom Sucesso (2020) e Vai na Fé (2023), flerta com uma dramaturgia relacional, onde o conflito emerge menos de antagonismos externos do que das fraturas internas das personagens. Nesse sentido, Dona de Mim parece buscar um grau de intimidade narrativa raro no horário: o centro da ação não está nos eventos espetaculares, mas nas fricções do cotidiano — familiares, profissionais, afetivas. É uma dramaturgia de gestos, silêncios e olhares.
A novela ainda procura seu tom definitivo, mas faz isso assumindo riscos, propondo perguntas e, sobretudo, apresentando uma protagonista que não quer apenas ocupar espaço — quer deslocá-lo.
No entanto, essa ambição estética encontra limites na própria arquitetura da novela. As subtramas, em sua maioria, não alcançam o mesmo grau de densidade dramática da linha principal, funcionando por vezes como preenchimento ou diluição. Falta-lhes o mesmo rigor de construção e, sobretudo, uma conexão mais orgânica com o eixo central. Nota-se aqui o conflito entre o desejo de inovação e a necessidade de atender às convenções do gênero, ainda muito pautado por índices de audiência e padrões de produção industrial.
Visualmente, a novela adota uma paleta cromática viva, urbana, que dialoga com a proposta de uma protagonista que habita, e é habitada, pela cidade, pela periferia. A direção, no entanto, nem sempre consegue traduzir em imagem a complexidade sugerida pelo texto. Há momentos em que a mise-en-scène recua para o convencional, talvez em nome da fluidez narrativa, talvez por hesitação em radicalizar escolhas formais.
Mas Dona de Mim é, antes de tudo, um gesto. Um gesto de tentativa. Um experimento dentro dos limites de um formato historicamente marcado por sua rigidez, mas que, em sua longa trajetória, também sempre foi capaz de absorver os sinais do tempo. E nesse gesto, há valor. A novela ainda procura seu tom definitivo, mas faz isso assumindo riscos, propondo perguntas e, sobretudo, apresentando uma protagonista que não quer apenas ocupar espaço — quer deslocá-lo.
Talvez seja cedo para julgá-la em sua totalidade, mas já é possível afirmar que Dona de Mim participa de um momento de inflexão da teledramaturgia brasileira. Um momento em que as novelas precisam responder a múltiplas pressões — estéticas, políticas, comerciais — e em que a complexidade das personagens femininas emerge como um dos poucos consensos possíveis. Nesse cenário, a obra de Svartman não revoluciona, mas tensiona. E, ao tensionar, oferece uma leitura crítica do próprio meio.
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