A poucos capítulos do fim, Vale Tudo (2025) caminha para o desfecho cercada por uma mistura de expectativa e frustração. Refazer uma novela que, em 1988, foi o retrato moral de um país em frangalhos exigia coragem — ou uma pitada de ingenuidade. A TV Globo tentou atualizar o espelho, mas, na imagem refletida, o Brasil parece menos nítido. Ou talvez o espelho tenha sido cuidadosamente embaçado, como quem teme o que pode encontrar no fundo do vidro.
Desde os primeiros capítulos em que surgiu, uma certeza se impôs: Débora Bloch nasceu para ser a nova Odete Roitman. E, justiça seja feita, ela não imita Beatriz Segall — ela a subverte. Sua Odete é uma vilã que goza do próprio poder, mais sexualizada, mais debochada, mais humana — e, portanto, mais perigosa. Bloch transforma o sarcasmo em erotismo, o desprezo em charme. Sua Odete não apenas humilha: seduz, fascina, confunde. A cada cena, fica a dúvida incômoda — odiamos Odete ou apenas invejamos a liberdade com que ela afronta o mundo?
O assassinato de Odete, no entanto, não fez justiça à personagem e se desdobrou em uma trama detetivesca meio mambembe, beirando o risível, meio Agatha Christie, meio chanchada, com direito até ao Copacabana Palace, mesmo cenário do clássico do gênero da comédia cinematográfica brasileira O Homem do Sputnik (1959).
Houve, contudo, outros acertos. Um deles é a relação impagável entre Olavo (Ricardo Teodoro) e César Ribeiro (Cauã Reymond). Os dois se entendem sem palavras, cúmplices entre taças de vinho e planos sórdidos, trocando olhares que misturam afeto, cinismo e um leve perfume de admiração mútua. É uma parceria deliciosa de assistir — dois canalhas que se reconhecem no reflexo um do outro. Eles não salvaram a novela, mas a fizeram cintilar quando tudo parecia morno.
Entre os núcleos paralelos, um pequeno triunfo: Consuelo (Belize Pombal) e Jarbas (Leandro Firmino) formam uma família preta de classe média retratada com naturalidade, sem o peso pedagógico que a televisão costuma impor. Há verdade ali — o ruído da vida comum, a doçura e o cansaço, o gesto cotidiano que vale mais do que um discurso. Eles respiram o que tantos personagens, cercados de apartamentos brancos e luzes frias, parecem não ter: ar.
Paolla Oliveira, por sua vez, encontrou uma Heleninha menos trágica e mais ferida. Se Renata Sorrah, em 1988, encarnava a autodestruição com força quase operística, algo cômica, Paolla apostou na melancolia contida, na desistência mansa de quem já não acredita em redenção. Sua leitura é íntima, por vezes quase silenciosa — e, talvez por isso, comovente.
Celina (Malu Galli), símbolo de uma elite que se equilibra entre o humanismo e a superficialidade, nesta versão ganhou mais complexidade do que a vivida por Natália Thimberg, que era praticamente uma freira e tinha zero tridimensionalidade. Malu acertou no tom e brilhou.
Até Leonardo (Guilherme Magon), o filho de Odete que sobrevive nesta versão, funciona surpreendentemente bem. É uma trama absurda, claro, mas Vale Tudo sempre foi feita de absurdos bem temperados — e de certa ironia que, aqui e ali, ainda lampeja.
Por fim, a Maria de Fátima de Bella Campos, pelo bem ou para o mal, é puro espetáculo de século XXI — uma vilã de TikTok, moldada em filtros, hashtags e ambição. Vulgar, teatral, por vezes irresistível. Se a Fátima original vendia a casa da mãe, esta venderia o “antes e depois” patrocinado. É a ascensão social como performance, a farsa como estratégia, o sucesso como encenação. E Bella entendeu o jogo. Até sua queda foi transmitida em tempo real.
Mas nem tudo foi brilho.
Taís Araújo começou forte, dona de uma Raquel firme, dona de si. Aos poucos, contudo, foi sendo empurrada para as bordas da trama, apagada por personagens mais barulhentos, como se a novela não soubesse o que fazer com uma mulher que não precisa ser salva. O mesmo destino teve Ivan (Renato Góes), reduzido a um espectador de sua própria ruína. O casal central perdeu o eixo moral — e, com ele, parte da alma da novela.
O texto de Manuela Dias oscila entre o afiado e o frouxo. Há diálogos que cortam como bisturi — sobretudo os de Odete — e outros que soam como briefing de marca. Em muitos momentos, Vale Tudo parece menos uma novela e mais uma vitrine de intenções publicitárias. O drama para, o produto entra, o país sai de cena.
Alguns coadjuvantes mereciam mais sorte — como Eugênio, o mordomo vivido com pálida ironia por Luís Salem. Surge, dispara uma frase espirituosa, e desaparece. Um luxo desperdiçado, como se a novela tivesse medo do próprio humor, ou da leveza que um bom sarcasmo poderia trazer.
Em 1988, Vale Tudo era uma pergunta gritada: “Quem é honesto neste país?”. Em 2025, a pergunta segue urgente — mas o remake escolheu o conforto do silêncio.
Mas o que mais espanta é o silêncio político. Em 1988, Vale Tudo era uma pergunta gritada: “Quem é honesto neste país?”. Em 2025, a pergunta segue urgente — mas o remake escolheu o conforto do silêncio. A corrupção, a desigualdade, o cinismo continuam à espreita, mas a novela parece preferir a elegância das fachadas. Como se o país tivesse se tornado um condomínio fechado, e o enredo, uma visita guiada pelas suas áreas comuns.
No fim, este Vale Tudo é bonito, elegante, bem interpretado — e domesticado. Um espelho reluzente demais para refletir o Brasil. Ficou a sensação de que, quando o último capítulo for ao ar, teremos visto uma boa novela. Mas Vale Tudo nunca foi apenas isso. Era caos, era desconforto, era moral à beira do colapso.
Em 2025, restou o verniz — e a pergunta, agora, talvez seja outra: quem ainda tem coragem de se olhar de verdade nesse espelho?
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