ARede Globo estreou, na semana passada, sua nova campanha publicitária, cujo mote é bem sacado e bastante provocativo. Intitulada “Cem milhões de uns”, a campanha se fundamenta na ideia de que a Globo chega, diariamente, a cem milhões de pessoas – ou seja, praticamente à metade de toda a população do Brasil. Um dado, portanto, de muito peso e que reivindica uma importância gigantesca à emissora.
Primeiramente, gostaria aqui de fazer algumas considerações sobre as características do texto publicitário, e por que considero relevante examinar o discurso que uma campanha publicitária anexa a uma empresa. O funcionamento da publicidade se sustenta, sobretudo, em um enorme poder de síntese, em dizer muito em muito pouco tempo. Por isso mesmo, o bom texto publicitário é sempre preciso, complexo e repleto de sentidos múltiplos. Mais do que tudo, uma campanha tenta refletir como uma instituição se enxerga e, consequentemente, como pretende ser vista.
Mas aqui não falamos de uma empresa qualquer, e sim de uma marca gigantesca, que oferece um serviço complexo, importante e, na maior parte das vezes, controverso. Trata-se de uma emissora de televisão, uma instituição que pretende funcionar como uma espécie de “óculos” sobre o mundo para a população de todo um país. Além disso, não se trata de uma emissora qualquer, mas a maior de todas. Sendo assim, o produto que ela executa mexe profundamente na vida da população – assistindo ou não à televisão.
No entanto, como já discutido algumas vezes nessa coluna, a TV vivencia momentos de mudança no alcance do seu negócio – uma vez que, pela primeira vez ao longo de sua história, se vê em alguma medida ameaçada em seu poderio por outros veículos de comunicação que, teoricamente, são mais inclusivos, como as mídias digitais. Após reinar absoluta por muitas décadas como a principal mídia consumida pelos brasileiros (posto que ainda não perdeu), a televisão se vê provocada a admitir que os tempos, hoje, são outros.
O slogan da campanha busca conectar a Globo com as lógicas do mundo online, em que todos querem ser “uns” e não “mais uns”.
E aí chegamos no enigmático slogan da nova campanha da Globo, que defende chegar a “cem milhões de uns”. O texto, que é lido em três versões pelos atores Eliane Giardini, Debora Falabella e Danton Mello, causou alguma repercussão durante essa semana pelo que se entendeu como um tom um tanto agressivo do texto. A frase “uns gostam da gente, outros dizem que não” foi compreendida por muitos como uma provocação aos haters, ou seja, àqueles que se posicionam claramente críticos à emissora – uma camada da população que só cresce, como já comentei em outros textos, numa crítica que costuma ser feita não somente à Globo, mas a todas as empresas de comunicação hegemônicas.
Conforme já exposto, uma das grandes qualidades da mensagem publicitária é sua capacidade de dizer muito em poucas palavras. Bem pensado, o slogan da campanha busca solidificar a ideia de onipresença da Globo: intenta consolidar a concepção de que ninguém consegue escapar da influência da emissora. Ela está introjetada como parte de nossa realidade, mesmo para os que “dizem que não” gostam dela (o que sugere que, no fundo, talvez eles gostem).
Mas o que mais me chama a atenção não é nem o polêmico trecho, que foi entendido como quase irônico, mas o próprio slogan do “cem milhões de uns”, que parece revelar uma intenção da emissora em manter-se conectada e ajustada com as atuais demandas do público. A frase busca conectar a Globo com as lógicas do mundo online, em que todos querem ser “uns” e não “mais uns”. Ou seja, uma lógica de proximidade, de sentir-se ligado às mídias que consome – mais do que isto, visto por ela. A imagem das digitais na arte da campanha, remetendo à ideia de identidade, reforça a intenção de retratar a empresa sob uma ótica intimista, e não como a gigante (por isso mesmo, impessoal, avessa às técnicas “artesanais” e às relações de proximidade) que de fato é.
Obviamente, tudo isso diz respeito ao discurso carregado pela campanha publicitária, e não necessariamente reflete mudanças efetivas nas práticas da emissora. Mas o fato de que a Globo – a maior representante dessas que podemos chamar já de “velhas mídias” – lance um posicionamento que busca valorizar os “cem milhões de alguéns” que a acompanham não deixa de ser um sintoma bem relevante sobre a nossa realidade. Simultaneamente provocativa e inclusiva, a campanha da Globo acaba por falar muito sobre o atual estado da comunicação no Brasil – e, consequentemente, sobre nós.