A despeito de toda a polêmica em torno das decisões criativas, políticas e ideológicas abordadas em O Mecanismo, a série deu certo. Quando determinada coisa é amada ou odiada demais, as pessoas automaticamente ficam tentadas a experimentar, assistir, entrar na rodinha de conversa. O que deveria ser vista apenas como uma série bem meia boca, virou motivos para protestos frágeis e discussões intermináveis sobre o que é verdade ou não é.
É claro que toda a obra carrega a visão de vida e política do autor. José Padilha, criador da série junto com Elena Soárez, assume um posicionamento claro e válido, mas extremamente óbvio. Por isso, vira uma série panfletária ingênua, como se os roteiros tivessem sido escritos por um conglomerado de grupos do Facebook. Com diálogos pobres e um senso comum infantil, O Mecanismo não provoca análise, não faz pensar, apenas reitera um discurso vazio. Mas o pior de tudo é que a série comete o maior dos erros: a história termina do mesmo jeito que começou. Os personagens não evoluem, a história anda em círculos. Nem mesmo o argumento de que “o Brasil é assim mesmo” justifica o deslize, porque não estamos vendo um documentário.
Baseado no livro de Vladimir Netto, Lava Jato – O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil, além de livremente inspirado em todo o desenrolar da operação da Polícia Federal, O Mecanismo se vende como um thriller tenso e complexo que mostra um dos esquemas de corrupção mais absurdos de todos os tempos.
Devemos lembrar que a série é uma produção da Netflix vendida para o mundo todo, não apenas aqui na nossa casa. Mas Padilha e a equipe parecem ter esquecido desse pequeno detalhe, o que é bastante surpreendente visto seus bons últimos trabalhos em Narcos e Tropa de Elite. Se essas obras tinham um diálogo mais universal, O Mecanismo é a nossa grande piada interna. Foi feita para nós e as entrelinhas só fazem sentido para nós. Padilha sabe disso e entende que no atual momento político em que o Brasil vive, a produção causaria impacto. Por isso, colocar a frase sobre estancar a sangria na boca do personagem que interpreta Lula é muito mais do que uma liberdade na narrativa. É proposital e tem seus objetivos muito claros, por mais que o diretor bote panos quentes em cima da decisão.
Os personagens são todos maniqueístas e há uma enfadonha luta entre o bem e o mal, opção batida e ingênua.
Parecendo muito mais uma paródia, a série utiliza alguns subterfúgios criativos para não correr o risco de levar um processo nas costas. Por isso, quase todos os nomes foram substituídos por similares, o que causa um sentimento ridículo no público brasileiro. Afinal, Petrobras vira Petrobrasil; a ex-presidente Dilma Roussef vira Janet Ruscov; Michel Temer vira Samuel Thames; Lula vira apenas José Higino e o PT acaba virando PO (Partidos dos Operários). Para uma série claramente inspirada em eventos reais, essas substituições de nomes soam medrosas e risíveis.
Os dois primeiros episódios trazem uma narração exagerada de Selton Mello e Carol Abras, que não serve para absolutamente nada a não ser repetir o que já estamos vendo na tela. O artifício deveria ser utilizado para analisar a situação e a história, mas carrega um texto surpreendentemente fraco. A analogia entre corrupção e câncer é repetida incansavelmente, tal como a quantidade de palavrões utilizados em todo e qualquer contexto, sempre com entonações forçadas, o que deixa as cenas sempre um tanto quanto ridículas.
Os personagens são todos maniqueístas e estereotipados e há uma enfadonha luta entre o bem e o mal, opção batida e, de novo, ingênua. A Polícia Federal e Ministério Público – vistos como redentores da nação – vivem de seus agentes que não dormem, entram em depressão e destroem suas vidas pessoais em busca do bem estar maior. Os corruptos moram sempre em grandes mansões e estão sempre confabulando, armando, fazendo acordos e roubando. É compreensível para a história, mas mal executado. O Mecanismo tem receita perfeita para ser um drama interessante e um thriller político elegante, mas depois de oito episódios, a série não chega a lugar nenhum.
Tudo isso nos leva ao ápice da descoberta do protagonista, Marco Ruffo (Selton Mello), que demorou uma década para entender que o tal mecanismo do título funciona como uma grande engrenagem que se alimenta das pequenas corrupções diárias até chegar aos grandes políticos. E dá-lhe frases feitas para dizer que todos nós somos corruptos porque falsificamos carteirinhas para meia-entrada, que o Brasil não é para amadores, que nada funciona nesse país e que não há mais direita e esquerda, porque todos estão no mesmo barco.
Por falar em Selton Mello, seu personagem soa mal construído e muito menos complexo do que parece. Com uma dicção estranha, seus diálogos são prejudicados tanto pela forma de falar quanto pela edição de som da própria série, mesmo problema irritante visto em 3% – uma produção bem mais cheia de falhas que O Mecanismo, mas muito mais interessante em termos de narrativa. A esposa de Ruffo, Regina (Suzana Ribeiro), é dispensável, tal como o drama da filha do casal, que não encaixa em nada na história e só serve para que Ruffo chegue à conclusão dita no parágrafo anterior de maneira forçada. Fora tudo isso, Padilha e roteiristas não confiam no próprio público, subestimando a inteligência de cada um, deixando todas as cenas didáticas, exaustivamente explicadinhas e utilizando um letreiro para informar os locais onde a ação se passa, algo que seria facilmente identificado por nós.
As partes boas – e elas existem – ficam por conta de algumas atuações, especialmente a de Enrique Diaz (Roberto Ibrahim/Alberto Youssef), que traz um vilão debochado, cínico e psicopata muito mais perto da realidade. O personagem, aliás, renderia uma ótima série. Caroline Abras (Verena Cardoni/Erika Marena) faz milagre com um texto ruim. A fotografia, contrastando toda a sujeira institucional, opta por mostrar um Brasil limpo com pontos turísticos de grandes cidades, como Curitiba, São Paulo e Brasília, o que dá a série um tom bonito de se ver e parece ser o único acerto de Padilha para vender a série no exterior.
Mas no geral, infelizmente, O Mecanismo acaba sendo uma obra cafona, que ao invés de servir para contar um período histórico recente do país, acaba por escolher o caminho mais fácil e repetir ideias e ideais frágeis. É muito mais efetivo, por exemplo, assistir a qualquer edição da Globo News. Parece que Padilha levou a sério a brincadeira de que o Brasil é um House of Cards da vida real, mas não contou com o fato de que é muito mais difícil dramatizar a realidade, especialmente quando essa realidade não tem conclusão e nem pode ser polarizada. Na pressa de fazer uma série que corrobora os absurdos vistos diariamente no Brasil, O Mecanismo desperdiça potencial com personagens bobos e um roteiro que tem a força de um textão de Facebook. É foda. É um câncer.