Como bem disse Maura Martins em seu texto sobre a fala homofóbica da apresentadora Patrícia Abravanel no Programa Silvio Santos (leia aqui), a televisão continua tendo um forte papel na consolidação ou desconstrução de discursos, seja ele qual for.
Já ouvi — e também já concordei bastante com a ideia — de que a maioria da população brasileira começaria a achar “normal” um relacionamento homoafetivo quando a Rede Globo mostrasse um beijo entre um casal do mesmo sexo, que mantivesse uma relação sem estereótipos. Quando Felix beijou Niko em Amor à Vida, muitos se emocionaram, outros acharam uma abominação. Quando Fernanda Montenegro beijou Nathalia Timberg, a repercussão foi imensa, tanto em discursos de apoio quando de boicote. Bem ou mal, a televisão ainda incomoda e ocupa um importante papel no imaginário social.
O objetivo do texto, enfim, é relembrar alguns seriados norte-americanos e brasileiros que quebraram a barreira do comum e provocaram a audiência.
Em Laços de Família (2000), novela de Manoel Carlos atualmente reprisada no Canal Viva, algumas personagens discutem os atributos do homem negro e como eles são famosos por isso. A empregada negra só entra em cena para servir os patrões ou ser o alívio cômico da cena. Há algumas cenas que podem ser interpretadas como uma romantização do estupro. O mundo é claramente dividido entre a cozinha e a sala de jantar. Se hoje isso causa estranhamento, um longo caminho foi percorrido até que essas situações não mais fizessem parte de boa parte da dramaturgia ou que, pelo menos, não passassem com naturalidade. A televisão, então, acompanha e reflete as mudanças sociais, desempenhando um papel identificador em seu público.
O objetivo do texto, enfim, é relembrar alguns seriados norte-americanos e brasileiros que quebraram a barreira do comum e provocaram a audiência, abrindo espaço para diversas outras produções atuais, que não existiriam caso os roteiristas e os canais não tivessem a coragem de ousar.
Os Destemidos (1965)
Quebrar a barreira do preconceito racial ainda é um desafio. Se hoje temos diversas produções com protagonistas negros, a imensa maioria de séries, novelas e filmes continua representando o negro de forma menor. Nos anos 1960, então, a coisa era bem pior. O cantor Nat King Cole, por exemplo, não conseguia patrocinadores para seu programa na rede NBC simplesmente por ser negro. Mas foi com Os Destemidos, em 1964, que a televisão norte-americana ganhou seu primeiro protagonista negro. Bill Cosby interpretava o técnico de tênis Alexander Scott, treinador de Kelly Robinson (Robert Culp). O produtor Sheldon Leonard precisou discutir bastante com a NBC para que Cosby tivesse um papel de destaque na história. O ator acabou ganhando três Emmys como melhor ator.
A Feiticeira (1964)
Além de ter sido um dos maiores fenômenos da televisão mundial, presente ainda hoje no imaginário dos mais velhos, A Feiticeira inovou ao mostrar um casal que dormia junto na mesma cama, algo impensável de ser mostrado na sala dos norte-americanos. A protagonista, aliás, também era filha de pais separados. Um escândalo!
A Família Addams (1964)
A funesta família norte-americana sempre foi transgressora, mas Gomez e Mortícia Addams foram o primeiro casal na TV americana a sutilmente sugerir ao público que mantinham uma vida sexual ativa. A ideia dos atores e dos roteiristas era provocar os casais conservadores.
Julia (1968)
Também exibida pela NBC, Julia foi a primeira comédia na qual uma atriz negra interpretou uma personagem sem estereótipos. Antes, as mulheres negras faziam papéis menores e caricatos. Além disso, a série precisou lidar com mais um preconceito: Julia era viúva. A personagem havia perdido o marido na Guerra do Vietnã e lutava para cuidar do filho. Ela é contratada como enfermeira e assistente do médico Morton. Quem também a ajuda nos problemas domésticos é Sol Cooper, o zelador do prédio da viúva. Inaugurando as dramédias, tão em alta hoje em dia, Julia era interpretada pela cantora Diahann Carrol e foi um divisor de águas na televisão norte-americana.
The Mary Tyler Moore Show (1970)
Criada por James L. Brooks e Allan Burns para CBS, The Mary Tyler Moore Show fez um enorme sucessos nos EUA ao contar a história de uma mulher de 30 anos, Mary Richards, solteira e bem-sucedida, que exerce a carreira de produtora de um canal de TV chefiado por homens. A série inovou ao mostrar o cotidiano de uma mulher solteira que enfrentava o machismo predominante na redação. A atriz Mary Tyler Moore levou aos lares americanos o empoderamento feminino ao romper o noivado e se mudar para outra cidade, arranjar um novo emprego, tudo isso ao lado de outras mulheres.
Malu Mulher (1979)
Talvez a série brasileira mais importante para a representatividade feminina, Malu Mulher foi um marco na história da nossa dramaturgia. A série ganhou diversos prêmios internacionais, como o Ondas 79, da Sociedade Espanhola de Radiodifusão, e o prêmio Íris 80, da Associação Americana de Programadores de Televisão, tendo sido exportada para mais de 50 países.
Inspirado no filme Uma Mulher Descasada (1978), Regina Duarte vivia Malu, casada há 13 anos com Pedro Henrique (Denis Carvalho). Após imensas brigas e frustrações no casamento, Malu começa a questionar seu relacionamento, até que decide se separar. Além de abordar a emancipação feminina de forma impactante, Malu Mulher ainda discutiu assuntos que poderiam ser exibidos em 2016, como violência contra a mulher, pílula do dia seguinte, separação, aborto e homossexualidade. Tudo isso em plena ditadura militar.
A série também mostrou o primeiro orgasmo feminino na TV brasileira. No episódio “De repente, tudo novamente”, numa cena de sexo entre Regina Duarte e Paulo Figueiredo, a câmera focalizava a mão de Malu fechada e depois abrindo num espasmo. Além disso, Malu, em uma das cenas, se posiciona a favor do aborto, dizendo: “Enquanto não for legalizado, as infelizes das mulheres estão nas mãos deles, mesmo (dos médicos clandestinos). Todo mundo condena, diz que é crime, que é pecado, mas, na hora, todo mundo fecha os olhos porque um dia pode precisar (…) se é necessário, se é uma coisa inevitável, por que não legalizar? Por que não tornar menos sórdido, mais civilizado?”. Para entender a importância de Malu Mulher na nossa história, basta pensar essa frase sendo dita pela boca da namoradinha do Brasil, no final dos anos 1970.
Dinastia (1981)
A premiada série da ABC apresentou o primeiro personagem assumidamente gay da TV. Steven (Al Corley) provoca a fúria do pai Blake (John Forsythe), que não o aceita. Apesar de sua orientação sexual, Steven acaba conhecendo e tendo um caso com Claudia (Pamela Bellwood), cujo casamento vai de mal a pior.
As Supergatas (1985)
Lembrado até hoje, As Supergastas foi um imenso sucesso na televisão mundial. Durante suas sete temporadas, a série ficou entre os dez programas mais assistidos, apenas por mostrar o cotidiano de quatro mulheres velhinhas dentro de casa. As supergatas focaram na emancipação das mulheres na terceira idade bem antes de Grace and Frankie aparecer na Netflix. Apesar de ser uma comédia, a série abordou temas bastante sérios, como morte, Aids, assédio sexual, homossexualidade e impotência sexual.
Nos Bastidores da Lei (L.A Law, 1986)
Exibida pela NBC entre 1986 e 1994, Nos Bastidores da Lei apresentou o primeiro beijo entre mulheres numa produção do horário nobre nos EUA. O episódio foi ao ar em 1991, e a cena acontecia entre as advogadas Abby e C.J (Michele Greene e Amanda Donohoe). A série ganhou diversos Emmys e também a antipatia por boa parte do público após o beijo entre as duas.
Melrose Place (1992)
Melrose Place foi uma série derivada de Barrados no Baile e fez grande sucesso durante suas sete temporadas. A série teve um dos raros gays assumidos numa produção do horário nobre. O assistente social Matt (Doug Savant) ocupou um papel importante na história quando o criador Darren Star aproveitou o personagem para tratar pela primeira vez numa série sobre temas ligados à homossexualidade, como violência física e os militares que não saem do armário. Apesar disso, o personagem não podia levar uma vida sexual ativa, já que a produção sofria intensas pressões por parte da emissora e dos anunciantes.
Ellen (1994)
Ellen fez um imenso sucesso nos Estados Unidos e alçou Ellen DeGeneres a uma das melhores comediantes da TV. Mas foi em 1997 que a série fez história quando personagem e atriz se assumiram homossexuais durante um episódio. Entretanto, a revelação não foi bem vista pelo público.
Em uma decisão bastante estranha, o canal ABC começou a colocar avisos antes do começo dos episódios a fim de “alertar os pais sobre a natureza do programa”. Após a revelação de Ellen, a audiência caiu absurdamente, sendo cancelada em 1998, depois de cinco temporadas.
Will & Grace (1998)
Aclamada durante suas oito temporadas, Will & Grace mostrou o cotidiano da decoradora Grace Adler (Debra Messing) e do advogado Will Truman (Eric McCormack). No passado, os dois foram namorados, até o dia em que Grace descobriu que Truman queria sair do armário. Como eles se gostavam, foram morar juntos em Nova York.
Grace trabalhava num ateliê de arquitetura com a ótima e sarcástica Karen Walker (Megan Mullally), uma milionária que precisava de um emprego qualquer só para se distrair. Do outro lado, estava o melhor amigo gay de Will, Jack (Sean Hayes), que insistia em uma carreira de ator, apesar de ser péssimo.
No início, a série enfrentou imensas críticas não apenas dos conservadores, mas da comunidade LGBT, que considerava os personagens caricatos. Com o passar do tempo, o programa conseguiu colocar em destaque dois personagens assumidamente gays no horário nobre e ganhar o carinho do público norte-americano.
A série foi elogiada pela crítica por ajudar a melhorar a opinião pública sobre a comunidade LGBT. Em 2014, o Instituto Smithsoniano (instituição educacional e de pesquisa do governo dos EUA) adicionou uma coleção sobre a história LGBT para seu museu que incluía itens da série. O curador justificou a escolha por Will & Grace ter familiarizado o público geral com a cultura gay, além de quebrar paradigmas na indústria cultural norte-americana.
Sex and the City (1998)
Sem dúvida, a série que teve mais coragem ao colocar mulheres como donas do seu próprio nariz e com uma vida sexual ativa. A premiada série da HBO expôs a visão feminina sobre sexo e relacionamentos como nunca havia sido feito antes. Os roteiros eram tão bem elaborados e com diálogos tão afiados que provocaram uma revolução na mídia norte-americana. Não raro, a série era assunto principal em análises sobre feminismo e empoderamento, além de ter forçado outras produções a abordarem temas mais ousados.
Dawson’s Creek (1998)
A simpática série sobre os adolescentes de Capeside foi uma febre juvenil nos anos 1990. Além de ser um dos seriados com a temática teen a alçar sucesso mundial, Dawson’s Creek fez história ao mostrar o primeiro beijo da televisão norte-americana entre dois homens adolescentes.
Família Soprano (1999)
A série sobre a máfia de New Jersey chefiada pelo poderoso Tony Soprano não apenas inaugurou a era de ouro da televisão norte-americana, como obrigou todas as outras produções a alcançarem uma qualidade acima da média.
Depois de Sopranos, a televisão nunca mais pôde ser considerada um produto cultural de menor valor. Além disso, Família Soprano foi o primeiro seriado exibido na TV paga a ganhar um Emmy de melhor série dramática.
Queer as Folk (2000)
A televisão fechada dos Estados Unidos atualmente ocupa o posto de berço criativo das melhores e mais corajosas produções que se tem noticia. Entretanto, isso já acontece há bastante tempo. É inimaginável pensar Queer as Folk sendo exibida em qualquer canal aberto de lá, e mais absurdo ainda pensar que algum dia os canais brasileiros farão alguma coisa parecida.
Adaptado por Ron Cowen e Daniel Lipman, a série foi baseada no britânico Queer as Folk, de Russell T Davies. A série narra a história de cinco homens homossexuais que vivem em Pittsburgh, Pennsylvania: Brian, Justin, Michael, Emmett e Ted. Compondo o elenco principal, ainda temos o casal de lésbicas Lindsay e Melanie e a mãe orgulhosa de Michael, Debbie.
Com cinco temporadas, a série foi um marco na luta dos direitos LGBT. Mesmo tendo bastante sexo, o programa jamais se limitou a resumir os gays como seres promíscuos, sendo a primeira produção a focar os homossexuais como pessoas comuns, com problemas normais, tanto em aspectos positivos quanto negativos. Era constantemente elogiada pela crítica, mas curiosamente (ou não) nunca foi indicada para o Emmy ou Globo de Ouro.
The L Word (2004)
Tal como Queer as Folk, The L Word ocupa um papel importante na televisão ao focar na comunidade lésbica de Los Angeles. Embora tenha tido menos impacto, a série mostrou a vida, os relacionamentos e as experiências de um grupo de lésbicas e seus amigos, familiares e parceiras.
A personagem principal é Jenny, uma recém-chegada à cidade com seu namorado Tim. Ela passa a se questionar sobre sua orientação sexual após conhecer Marina, a dona do café The Planet, frequentado pelo casal Bette e Tima, que estão juntas há sete anos e querem ter um filho. Nenhuma série reuniu um grupo de personagens principais totalmente gays ou lésbicas como The L Word e Queer as Folk.
Weeds (2005)
O que mais poderia provocar a ira dos conservadores do que uma dona de casa bela e recatada plantando maconha para sustentar sua família? Essa é a ideia central de Weeds, que provocava ainda mais ao colocar a personagem Nancy (Mary-Louise Parker) vendendo maconha para os ricaços do bairro.
A série ganhou o amor da crítica e do público por abordar o tema de forma divertida e por escancarar que a erva ainda era objeto de desejo por boa parte da classe média norte-americana.
Amor Imenso (2006)
Produzida por Tom Hanks para a HBO, a série gira em torno de Bill Henrickson (Bill Paxton), suas três esposas Barb (Jeanne Tripplehorn), a primeira esposa; Nicki (Chloë Sevigny), a segunda e Margene (Ginnifer Goodwin), terceira esposa e seus nove filhos! Henrickson vive com sua família em três casas vizinhas em Salt Lake City.
Chamou a atenção da mídia para as comunidades mórmons existentes nos EUA que ainda praticam a poligamia e causou polêmica entre elas ao insinuar que essa prática não tem ligação religiosa, mas puramente sexual. Na história, um personagem de 60 anos, por exemplo, se casa com uma garota de 14.
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