O Outro Lado do Paraíso terminou na última sexta-feira (11) e, pelo menos para a colunista que vos escreve, não vai deixar saudades. A novela marcou bons pontos de audiência, mas falhou em sua história e prestou inúmeros desserviços ao tentar fazer merchandising social sem o devido cuidado.
Desde o começo, a novela se propôs a explorar temas polêmicos: violência doméstica, relacionamentos abusivos, pedofilia, homossexualidade, racismo, nanismo, alcoolismo, assédio, corrupção e prostituição eram os principais. Porém, apesar da intenção, o conteúdo foi explorado de qualquer forma, sem o cuidado de passar a informação correta ou mesmo educar.
Na verdade, como muito bem colocado pelo colunista Nilson Xavier, a novela só agradou ao público conservador e que não está a fim de ser desafiado ou instigado. Xavier comentou em seu texto que o autor perdeu a oportunidade de uma abordagem profunda, conduzindo tudo para a caricatura ou para uma discussão rasa, com desfechos mal alinhavados e vazios, promovendo o deboche de minorias e oprimidos através do humor anacrônico, apelativo e de mau gosto, que não cabe mais nos dias atuais – como o escárnio de prostitutas, gays e anões disfarçado de alívio cômico.
Não é à toa que o folhetim recebeu diversas críticas de instituições ao longo dos meses que ficou no ar, ao retratar acontecimentos de maneiras incorretas: como a Associação Brasileira de Psiquiatria, que questionou a maneira como foi abordado o tratamento de esquizofrenia; o Conselho Federal de Psicologia, que criticou uma sessão de hipnose feita por uma advogada; e associações ligadas à amamentação, que se indignaram com uma espécie de acordo para “ama de leite”.
O núcleo que mais me causou revolta foi o homossexual. Depois de todo o avanço conquistado por A Força do Querer, a abordagem sobre o tema retrocedeu novamente. Em vez de garantir o patamar alcançado, Carrasco reforçou o preconceito, a estigmatização e os estereótipos. O enredo passou meses pregando a cura gay e ridicularizando homossexuais desprezados pelas famílias para, ao final, dar uma conclusão pouco convincente com direito a um beijo entre Samuel (Eriberto Leão) e Cido (Rafael Zulu), como se isso concertasse tudo.
Entretanto, quem sabe o beijo tenha sido uma tentativa do autor se redimir e relembrar uma vitória que foi sua (ou talvez só alcançar os mesmos pontos de audiência): o beijo de Félix e Nico em Amor à Vida. Isto leva a outro questionamento: como Walcyr Carrasco foi capaz de escrever esse núcleo depois de Félix?
É triste pensarmos que personagens intolerantes funcionam como uma válvula inconsciente de escape para que o público extravase o preconceito através de esquetes de humor.
Além disso, o psiquiatra Samuel estava na lista de vingança de Clara (Bianca Bin), afinal foi ele que validou o laudo de insanidade que a fez ser internada por 10 anos em um hospício. Porém, diferente dos demais, a vingança da mocinha contra ele não envolveu em nada sua dignidade profissional e ficou apenas no campo pessoal: expor sua orientação sexual, como se isso fosse um castigo. Isso vai contra o discurso de justiça pregado por Clara durante a trama: profissionalmente nada aconteceu e o psiquiatra poderia continuar forjando laudos mentais se quisesse.
Dentro desse núcleo, ainda posso citar o caso de assédio do médico ginecologista que tratou Suzy (Ellen Rocche). A situação foi tratada com humor. Em nenhum momento houve algum comentário sobre a falta de ética médica ou o simples fato de ser assédio, porque claro, é aceitável, já que ela aparentava gostar e eles até ficaram juntos no final (é ironia, ok?, sempre bom deixar claro).
E já falei anteriormente aqui sobre a anã Estela (Juliana Caldas), cuja personagem pareceu apenas servir de chacota para outros personagens e despertar a curiosidade do público. Perdeu-se a oportunidade de dar visibilidade e levantar as dificuldades e o preconceito sofrido pelos portadores de nanismo. Até o enredo foi mal explorado, ela foi humilhada pela mãe a trama inteira e o autor quis que engolíssemos uma “redenção” ao ver a vilã oferecer migalhas a filha após ser abandonada.
E a racista Nádia (interpretada Eliane Giardini), que além de ser preconceituosa era corrupta, não pagou por nenhum de seus crimes e acabou ganhando uma “redenção” na etapa final. A personagem, que durante a novela inteira proferiu impropérios contra negros, se redimiu e, como num passe de mágica, tomou consciência da sua discriminação.
Não houve um debate mais a fundo sobre racismo, o tema também serviu apenas como alívio cômico para fisgar audiência. É triste pensarmos que personagens intolerantes funcionam como uma válvula inconsciente de escape para que o público extravase o preconceito através de esquetes de humor.
O personagem de Sérgio Guizé (Gael), o violentador de mulheres, foi outra abordagem infeliz. Em vez de aprofundar o tema da violência doméstica, do relacionamento abusivo, do estupro (ele violentou a Clara na Lua de Mel do casal, alguém lembra disso? Porque esse assunto nunca mais foi tocado), Carrasco preferiu apelar outra vez para a redenção. Ou seja, não se discutiu nada sobre esses assuntos, já que o personagem serviu apenas à trama romântica.
O final do personagem foi realmente intragável. Após ouvir da ex-esposa – a quem ele bateu diversas vezes e estuprou -, que ela amava outro, mas ele sempre seria bem-vindo em sua vida, Gael foi tentar a vida no Rio de Janeiro (deixando seu filho para trás). Na nova cidade ele quase atropela Thais (uma pontinha de Vanessa Giácomo), que está fugindo do marido que bateu nela, e a incentiva a denunciá-lo. Depois, ele conta que era como o marido da moça, fato que deveria deixá-la ainda mais traumatizada, mas não. Eles se beijam e ela sai de um relacionamento abusivo para entrar em outro, com um homem com longo histórico de violência. Plausível não?
Mas como se não bastasse a péssima abordagem a importantes temas. Os capítulos finais deixaram espaço para muitas críticas (veja alguns dos desfechos aqui). Por exemplo, onde foi parar Renato (Rafael Cardoso)?
No capítulo de quarta-feira, o vilão trocou tiros com a polícia, Gael e Patrick (Thiago Fragoso), ao final do sequestro do ex-enteado Tomaz (Vitor Figueiredo) e foi atingido, assim com os “mocinhos”. E pronto, não foi mais comentado nada sobre o personagem — supõe-se que ele morreu apenas porque não deu mais as caras no final da novela, mas se Gael e Patrick sobreviveram, ele também poderia estar vivo, não é?
O penúltimo capítulo da novela (que normalmente é até melhor e mais eletrizante que o último) foi tedioso e inteiramente destinado ao julgamento final de Sophia, assim como a primeira parte do último capítulo, comprovando que a verdadeira protagonista da novela foi a vilã de Marieta Severo. Valeu a pena porque finalmente pudemos ver Juliano Cazarré tendo a chance de usar seu talento com a cena de depoimento de Mariano.
O final da megera-mor serial killer psicopata da trama foi a repetição de uma cena dramática de Clara na primeira fase, quando a mocinha tomou eletrochoques ao ser trancada no hospício, provando que a lei do retorno se cumpriu. Mas, mesmo que o autor esperasse que o telespectador se desligasse da realidade ao ver sua novela e sentisse uma catarse com a “justiça”, é difícil acreditar e assimilar esse tipo de tratamento psiquiátrico em pleno século 21.
A morte de Caetana foi emocionante. Fui às lágrimas assistindo os personagens dos mestres Laura Cardoso, Fernanda Montenegro e Lima Duarte se despedindo em cena. E gostei da ideia do show do Pabllo Vittar no velório, combinava com a personalidade da personagem.
O que não entendi foi o clima de comemoração (como uma noite de trabalho na boate) e o tom surrealista com o espirito da ex-dona do bordel dançando enquanto sobe aos céus. Acabou criando um humor gratuito e despropositado. Só faltou Nossa Senhora recebendo-a no paraíso, um recurso que o autor não teve o menor pudor de utilizar com a morte de Nicole (Marina Ruy Barbosa) em Amor à Vida.
Walcyr Carrasco até tentou defender sua obra alegando que nunca quis ser realista. Não foi mesmo, mas também não foi apenas fantasiosa. E a partir do momento que se propôs a abordar temas de interesse social, deveria ter feito isso direito. Sendo assim, ele entregou uma história que prendeu o público com sua agilidade e suas reviravoltas, mas que mostrou a fragilidade de um roteiro fraco do começo ao fim. Resta esperar que a atual novela das nove, Segundo Sol, que já causou polêmica mesmo antes de estrear, não vá pelo mesmo caminho. Semana que vem tem análise da primeira semana!