Alguns dos principais reality shows da TV aberta – como MasterChef Brasil e The Voice – têm aproveitado a onda de seu sucesso para lançar versões kids, protagonizadas por crianças para desempenhar as mesmas funções dos programas originais com adultos. É uma forma, claro, de aproveitar carona numa febre televisiva e continuar faturando em cima de uma franquia muito bem-sucedida, investindo numa legião de fãs já cativados (lembremos, por exemplo, que a última edição de MasterChef Brasil foi praticamente emendada à versão dos profissionais).
Vale lembrar que os concursos infantis não são exatamente novidade: praticamente todos os shows de calouros, como os de Silvio Santos e Raul Gil, sempre receberam os pequenos candidatos à fama. Os resultados, obviamente, são diversos, mas em geral são menos divertidos os concursos que se levam a sério demais, e que prometem revelar “pequenos prodígios” em suas áreas de atuação. Aliás, a tragédia que deriva dessa obsessão dos pais pela revelação do talento infantil já foi esmiuçada, com muita delicadeza e bom humor, na pequena obra prima Os Excêntricos Tenenbaums (2001), filme de Wes Anderson.
Atualmente, a Globo exibe The Voice Kids, com alguma renovação no corpo de jurados em relação à versão adulta – os sertanejos Victor & Leo substituem Lulu Santos e Michel Teló. Esta é a segunda edição do programa, que trouxe à Globo bons resultados em 2016. Em 2017, volta mais batido, como lembrou o crítico Maurício Stycer, especialmente por conseguir explorar menos aquele que é o Santo Graal dos programas reality shows: os pequenos lampejos de espontaneidade e de reação instintiva, não ensaiada para as câmeras.
Se podemos pensar numa grande sacada no formato mirim destes concursos, é isso: a princípio, as crianças estão mais propensas a serem elas mesmas, estão menos moldadas que nós, os adultos, com nossa etiqueta social e a muito introjetada noção do que as pessoas esperam que façamos. Assim, a criança seria só instinto, expressão genuína, e por isso ela seria tão atraente aos nossos olhos – seja naquilo que faz de cativante (a explosão do “fofurômetro” do qual fala Tiago Leifert durante o The Voice Kids) quanto nas reações não tão positivas assim.
Mas se, idealmente, as versões infantis parecem promissoras de uma boa diversão televisiva, por que na prática acabam sendo tão sem graça? Lanço algumas possíveis leituras:
– A ideia de que criança equivale a espontaneidade já meio que esgotou há bastante tempo, uma vez que não é mais possível pensar em gerações crescidas alheias às mídias. Pelo contrário: a maioria das crianças convive com os veículos de comunicação desde pequenininhas. Elas já se desenvolvem cientes do controle da própria imagem – tornaram-se, por natureza, produtoras de selfies em suas mais diversas nuances, e são registradas em inúmeros cliques desde que nascem.
Se podemos pensar numa grande sacada no formato mirim destes concursos, é isso: a princípio, as crianças estão mais propensas a serem elas mesmas, estão menos moldadas que nós, os adultos, com nossa etiqueta social e a muito introjetada noção do que as pessoas esperam que façamos.
Sendo assim, a ideia da criança espontânea e genuína se torna um mito – mesmo no caso daquelas crianças do ambiente rural que só querem se manifestar seus talentos, mas estão já “contaminadas” pelo sonho da fama sertaneja como uma espécie de salvação possível aos que não têm outras oportunidades no horizonte. Para quem quiser responsabilizar o desenvolvimento dessas “crianças midiáticas” à onipresença dos tablets, celulares e outros dispositivos, eu diria que esse processo ocorre há pelo menos uns trinta anos.
– Conforme já comentei em outro momento, os reality shows profissionais carregam uma espécie de pedagogia do mundo corporativo, uma visão acerca do universo do trabalho e como seria o funcionamento ideal dele. É uma visão atrelada a uma forte hierarquização das funções e uma rígida obediência a mestres rígidos, os jurados, que funcionam como coachs autoritários: alguém que, por meio de uma mão dura, fará o aluno ir até o inferno na perspectiva de torná-lo melhor. É o que vemos, por exemplo, em MasterChef Brasil. É a mescla entre a frieza dos jurados e uma eventual doçura que forma boa parte da diversão do programa.
Quando as crianças são trazidas ao espetáculo, essa pedagogia precisa ser adaptada – já que, obviamente, ninguém toleraria assistir a crianças sendo escrachadas por Jacquin ou humilhadas por Fogaça. A responsabilidade com as consequências do programa às crianças é maior, e é preciso cuidar sempre para que elas não se traumatizem. Assim, em MasterChef Brasil, as crianças são sempre aplaudidas, mesmo se criticadas, e em The Voice Brasil elas são eliminadas em dupla, para minimizar um trauma. Trata-se de uma perspectiva responsável, é claro, mas não deixa de trazer uma certa sensação de que os pequenos são inadequados para esse tipo de atração.
– Crianças prodígio (tipo Maísa do SBT) geram pouca empatia e causam baixa identificação. Costumam ser mais irritantes que adoráveis. É um fato.
– Existe ainda uma certa forçação de barra ao elevar estas crianças a exemplos da cultura dos seus estados, tornando-as como que responsáveis por promover a identidade dos lugares de que elas vêm. Como se o fato de que um pequeno conterrâneo nosso está num desse programa o tornasse um símbolo de que todo o seu estado tem alguma representatividade cultural. Além de ser uma falácia, este é um fardo pesado demais para depositar em uma única criança..
– Por fim, volto ao “fofurômetro” mencionado por Tiago Leifert. Ou seja, crianças são fofas por natureza – especialmente para os seus pais e seus parentes, é claro. De alguma forma, a exploração da “fofurice” dos pequenos estraga um pouco a graça de que esses programas, afinal, são competições, e sua natureza é promover comparações e análises, algo mais difícil de ser feito quando você não quer magoar ninguém.
Por isso, não se sinta mal se por acaso você gosta de MasterChef Brasil ou The Voice Brasil, mas não consegue se cativar pelas versões mirins dos programas. Não é que você que não tenha coração ou não goste de crianças; provavelmente, é porque estes programas não são tão divertidos assim.