Há cerca de duas semanas, uma pequena polêmica adentrou as redes sociais após a transmissão do Teleton 2016 – o tradicional programa beneficente exibido pelo SBT durante 48 horas para arrecadar fundos à AACD, que assiste crianças com deficiências. A discussão que se acendeu nas redes sociais, mais uma vez, foi sobre a postura de Silvio Santos em alguns trechos do programa. Em certos momentos, Silvio teceu comentários que foram reconhecidos como racistas e gordofóbicos (ao interagir com um grupo de meninas plus size, fez graça com as integrantes e os seus pesos). Em outros, zoou o bairro de origem da cantora Anitta (“lugar de pobre”) e soltou algumas farpas em direção à própria filha que soaram, para alguns ouvidos, como machistas.
Ora, vivemos hoje (felizmente, eu agregaria) num momento de monitoramento daquilo que se fala publicamente e se propaga às massas pelos meios de comunicação. Se ainda estamos tateando em relação aos efeitos concretos daquilo que dizem as mídias (estão aí os resultados das últimas eleições que apontam isso com clareza), por outro lado, estamos cada vez mais atentos aos discursos implícitos que circulam por meio dessa imensurável visibilidade.
Ser espontâneo é uma característica importante especialmente aos apresentadores, essas figuras centrais do Olimpo televisivo: esperamos que eles falem o que não se espera que falem, que ‘digam verdades’, e não que pareçam macacos treinados pelas emissoras.
Alguns diriam que isso nos tornou mais chatos (no sentido de que passamos a “achar pelo em ovo” em tudo – os profissionais da publicidade, sobretudo, têm esta percepção); mas outros argumentariam que, por fim, estamos mais conscientes sobre as responsabilidades da comunicação, e que isso é essencialmente positivo. As barbaridades que outrora soavam naturais aos nossos ouvidos estão cada vez mais explícitas à população em geral.
Mas é claro que a comunicação humana não é matemática, e aí está Silvio Santos para nos provar. Se vivemos um tempo de conscientização e mesmo de militância, chama a atenção que esta regra não cabe a todos – e, curiosamente, o próprio grupo que teria sido estigmatizado pelo “Patrão” se manifestou em sua defesa. As dançarinas trouxeram argumentos interessantes ao debate: para elas, ninguém que fosse verdadeiramente preconceituoso cederia 48 horas de sua emissora para arrecadar dinheiro a crianças com deficiências. Em outro momento, assumem que alguns comentários que Silvio fez durante o Teleton foram mesmo desnecessários, mas eles se justificam pelo fato de o apresentador ser espontâneo.
E aí chegamos a esse obscuro objeto de desejo televisivo chamado espontaneidade. É um valor central a uma mídia em que, a princípio, tudo parece controlado – causando, paradoxalmente, o desejo pelo contrário, pelo que foge do domínio da televisão. Ser espontâneo é uma característica importante especialmente aos apresentadores, essas figuras centrais do Olimpo televisivo: esperamos que eles falem o que não se espera que falem, que “digam verdades”, e não que pareçam macacos treinados pelas emissoras (o que, ao que me parece, é uma das razões do fracasso de crítica do Adnight, do grande comediante Marcelo Adnet).
Mas, obviamente, a espontaneidade tem também limites. Nós nos regozijamos com o aparente “estouro” de Faustão quando ele parece revelar algo de bastidores acerca da relação das mídias com outras instituições, como o COB, mas caímos em cima quando uma de suas piadas escapa do filtro daquilo que é socialmente aceitável e ele profere uma frase machista. A dúvida que me suscita é: por que a Silvio Santos não cabem as mesmas regras?
Na busca de uma resposta, volto novamente à nota divulgada pelas dançarinas, que em certo momento declaram: se não fosse assim, não seria o Silvio Santos. O apresentador é um exemplo idiossincrático de personagem das mídias, e desempenha hoje uma função que é merecedora de muitas análises, pois não tem comparações a qualquer outra celebridade. Ao longo dos anos, Silvio Santos construiu com o SBT uma relação bastante particular com o público brasileiro. Conforme já abordado nesta coluna, é uma ligação quase familiar com a audiência, que os protege e os “desculpa” de todos os possíveis erros, como a desconsideração histórica com que o SBT trata o jornalismo, por exemplo.
Há outra pista interessante na nota das meninas. Quando comentam o fato de que Silvio Santos, deselegantemente, perguntou o peso delas, dizem: “sejamos francos, essa é a curiosidade de todas as pessoas, todo mundo quer saber quanto a pessoa pesa”. Aqui mais uma peça fundamental desta persona midiática estruturada por Silvio Santos: alguém de mais idade, cujos freios sociais já foram deixados para trás, e que diz o que todos pensam, mas não se dão o direito de assumir. Era um papel mais ou menos concretizado por Dercy Gonçalves, e perpetuada nos memes que ela até hoje protagoniza.
Ou seja, o peculiaríssimo personagem Silvio Santos, por fim, simboliza uma espécie de libertação a todos, e se associa a uma ideia de sabedoria que só se atinge na velhice. Acaba virando uma espécie de porta-voz de um desejo coletivo e não assumido por nós, ainda atrelados às infindáveis regras para a convivência social. É claro que, sem essas regras, o mundo seria caos, mas Silvio desempenha um papel de substituto midiático de algo que todos, em nosso íntimo, gostaríamos de poder fazer. Talvez seja por isso que parecemos perdoá-lo a cada barbaridade que fala – mesmo quando nós somos os atingidos.