É impressionante o quanto a TV permeia nossa memória afetiva. Quando o passado é resgatado em nossa mente, é bem provável que muitas das cenas que lembramos tenham no fundo algum programa que passava no televisor. Muitos brasileiros – eu, inclusive – nutrem recordações com as tardes de sábado acompanhadas pelo Cassino do Chacrinha, programa de auditório que foi ao ar pela Globo entre 1982 e 1988. Há toda uma geração, portanto, que não mais tem essa lembrança da atração, encerrada há 29 anos.
Como a nostalgia é um elemento importante da cultura, a Rede Globo deve exibir esta semana, no dia 6, o especial Chacrinha, o eterno guerreiro, uma reconstituição do célebre programa em razão dos 100 anos de Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Trata-se de uma verdadeira superprodução do canal, uma vez que mobilizou diversas estrelas entre funcionários da casa e convidados especiais (para se ter uma ideia, uma das atrações musicais é Roberto Carlos).
O mais surpreendente de tudo é que não é preciso ter assistido ao Chacrinha original para enxergar que o apresentador inaugurou o uso de vários elementos que foram depois aproveitados por seus muitos descendentes na televisão.
Stepan Nercessian foi o escolhido para encarnar o “Velho Guerreiro”, epíteto associado constantemente ao apresentador. Desenvolto, o ator não tem grandes dificuldades em refazer os trejeitos caricaturáveis de Chacrinha – que, inclusive, é também homenageado com uma competição de “Chacrinhas” realizada pela nata de humoristas da Globo, por nomes como Marcius Melhem, Marcelo Adnet, Tom Cavalcanti e Otaviano Costa.
A reconstituição é esmerada, e reproduz com detalhes o clima carnavalesco do Cassino do Chacrinha, como as roupas coloridas, os trocadilhos de duplo sentido e a alegria como regra entre todos os presentes. O tom de gratidão ao apresentador (já que a relevância do programa em sua época fez com que muitos artistas estourassem após estarem nele) é recorrente, e quase todos os convidados dizem “te amo” para o Chacrinha/ Stepan.
Os convidados, inclusive, foram escolhidos a dedo para possibilitar uma viagem direta aos anos 80 e suas estrelas. Angélica, que aparece como jurada, canta depois de muitos anos seu maior (e talvez único) sucesso musical, “Vou de táxi”. Estrelas da época e que foram catapultados ao sucesso no programa, como Blitz, Ney Matogrosso, Luiz Caldas, Alcione, Sidney Magal e Fabio Junior, dividem espaço com novas celebridades, como Luan Santana, Anitta e Marília Mendonça (todos eles, inclusive, provavelmente não assistiram ao programa).
Se, por um lado, os jovens artistas ficam um pouco deslocados da proposta saudosista do especial, por outro, [highlight color=”yellow”]funcionam enquanto atrações para um novo público que nada sabe de Chacrinha[/highlight]. Anitta – cuja espirituosidade e raciocínio rápido sejam talvez as grandes pérolas de sua performance – está perfeitamente adequada à interação nonsense com o apresentador. Ágil, ela entra e sai com destreza das piadas de duplo sentido feitas por Chacrinha / Stepan, como quando é jogada num comentário sexual com o apresentador André Marques (com quem, dizem as fofocas, teria tido um caso).
Mas o mais surpreendente de tudo é que não é preciso ter assistido ao Chacrinha original para enxergar que o apresentador inaugurou o uso de vários elementos – carregados de brasilidade, como lembra Pedro Bial em um comentário exibido sobre o Velho Guerreiro – que foram depois aproveitados por seus muitos descendentes na televisão.
É bastante provável que, se não existisse Chacrinha, não teríamos Ratinho, Faustão, Luciano Huck, Rodrigo Faro, Regina Casé. A herança deixada pelo “Painho” é vasta e facilmente reconhecível nos que o sucederam. O tom caótico do programa de Ratinho, em que diversos personagens se cruzam num palco aparentemente ilógico, é diretamente emprestado do carnaval montado no Cassino do Chacrinha. O tom jocoso e algo desrespeitoso de Faustão deriva diretamente do programa.
O programa, exibido originalmente pelo Canal Viva, faz parte de uma série de iniciativas da emissora que resgata sua história – podemos lembrar, por exemplo, da reconstituição recente feita da Escolinha do Professor Raimundo, outro programa da Globo que ativa fortes memórias afetivas no público, além da releitura de Os Trapalhões, ainda a estrear. Trata-se de uma [highlight color=”yellow”]estratégia bem bolada[/highlight], pois atinge diretamente o coração da audiência que, em tempos difíceis como os que vivemos, parece sedenta por relembrar nostalgicamente do passado – mesmo quando ele se perpassa, de forma imaginada que seja, pela televisão.