A ascensão das notícias falsas colocou a checagem como uma premissa primordial ao jornalismo em todas as plataformas. Na televisão, que tem ainda a maior abrangência frente à população brasileira, isto se torna ainda mais imprescindível. Mas como o fato de lidar com este problema tem interferido na rotina dos profissionais de TV?
O que tem se observado nos últimos anos (e que se potencializa durante épocas de pleito eleitoral) é uma cobrança do próprio telespectador para que haja este cuidado em esclarecer o que é falso. Nas eleições de 2022, a quantidade de mentiras propagadas pelos candidatos (assunto que já discutimos aqui na Escotilha) levantou uma cobrança de que o fact checking fosse inserido até na TV ao vivo durante os debates.
O fato é que a desinformação é um problema sério, que afeta a todos, mas que também é um sintoma: as notícias falsas só existem porque os jornalistas não têm mais o monopólio na criação das notícias. Eles precisam lidar diariamente com conteúdos vindos de todos os lugares, e investem parte de seu tempo de trabalho separando o que há de interesse público, o que é banal e o que é mentiroso entre aquilo que chega até as redações.
Para entender como este fenômeno tem afetado os profissionais que trabalham em emissoras de TV, conversamos com três jornalistas. O primeiro é Daniel Pereira, atualmente na CNN Brasil, que foi o idealizador do projeto Band Verifica. Os outros são dois repórteres de emissoras de TV aberta, que, por conta de regras de suas empresas, conversaram com a Escotilha sem se identificar. No intuito de organizar as suas falas nesta reportagem, os chamaremos de Z. e C.
Como as notícias falsas interferem no trabalho em TV?
Muitos profissionais que trabalham em empresas jornalísticas costumam relatar que passam boa parte de seu tempo checando informações – o que é uma novidade dentro do ofício. Daniel Pereira acredita que esse processo se acentuou a partir de 2014. “Diria que desde as eleições de 2014 e mais notadamente após aquela sequência de eventos internacionais como o Brexit e a eleição de Donald Trump, todos os tipos de jornalismo tiveram que se adaptar. No caso da televisão, desde a escolha da pauta até a finalização do material, a preocupação com a checagem é prioridade. Nesse ponto de vista, o cuidado com a apuração aumentou consideravelmente”, opina.
C. avalia que a checagem virou rotina do seu ofício, e que os conteúdos duvidosos chegam sobretudo pelo WhatsApp que a emissora disponibiliza para o público. ”Quando chega uma notícia falsa, ela é facilmente identificada. Notícia falsa tem cara de notícia falsa. Mas como é rotina na redação, a gente sempre checa as informações. Hoje, posso dizer que o impacto é mais de checar aquelas que foram mais bem elaboradas, porque a maioria é facilmente identificada”.
“Quando chega uma notícia falsa, ela é facilmente identificada. Notícia falsa tem cara de notícia falsa”
Já Z. crê que o problema das notícias falsas faz com que os profissionais tenham um trabalho redobrado, que envolve desmentir a mentira para então produzir a notícia correta. E isto traz consequências ao consumo do jornalismo. “Acaba que, muitas vezes, as pessoas ficam descrentes da notícia, e pode ser algo verdadeiro, mas o público, de forma cética, não aceita”, explica.
Por outro lado, C. destaca que os profissionais de TV têm alguma vantagem neste processo, pois têm acesso fácil às fontes de informação. “Órgãos oficiais e demais fontes sabem que a circulação de fake news virou algo corriqueiro. Então, quando há dúvida, mandamos para essas fontes e rapidamente obtemos resposta”.
Ele ainda aponta a algo interessante: o fenômeno das fake news criou uma espécie de esforço coletivo entre diferentes setores para combater este transtorno. “Parece que virou uma cooperação mútua no combate às notícias falsas. Mas posso dizer que hoje, como a maioria das informações fake é facilmente identificada, não se leva mais muito tempo na checagem”. E como as notícias falsas são identificadas? “Pelo conteúdo fora do contexto real, pela fonte de informação, pela maneira que chegam até nós”, aponta.
O repórter Z. chama a atenção para um outro fator importante, e nem sempre discutido sobre o papel das emissoras de TV neste problema. Ele comenta que, em seu estado, muitas vezes os veículos “surfam” de alguma forma em notícias falsas por conta de audiência. “Em algumas emissoras, existe uma espécie de postura do tipo ‘se essas notícias falsas estão aí, vamos comentá-las, mesmo que não sejam verdade’. Infelizmente existem algumas que se utilizam disso para fomentar um debate só de olho na audiência mesmo, cravando uma discussão rasa”.
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Todo mundo faz checagem?
Um aspecto da realidade atual de quem trabalha em emissoras de TV é o recebimento contínuo de materiais vindos da população. Praticamente todas as TVs valorizam estes conteúdos (como fotos, vídeos e sugestões de pauta) pois eles facilitam a prática diária dos profissionais, além de fazer com que os espectadores se sintam incluídos nos telejornais.
Mas isto traz também um ônus. Conforme já foi discutido nas outras matérias desta série sobre fake news, há uma discussão hoje sobre a efetividade da checagem, uma vez que nem sempre as pessoas que compartilharam desinformação estão interessadas em saber a versão real.
O jornalista Daniel Pereira aponta que o trabalho de checagem se tornou uma realidade na rotina dos jornalistas. “Não é exatamente um trabalho simples ou interessante, mas algo que se impôs. Cair em uma fake news pode arruinar a carreira de um jornalista. E eu diria que o velho medo da barrigada ganhou uma nova roupagem com essa profusão de informação no mundo digital, especialmente nas redes sociais”.
“Cair em uma fake news pode arruinar a carreira de um jornalista”
Daniel Pereira
Um consenso entre os jornalistas entrevistados é que, embora as notícias falsas sejam facilmente reconhecíveis, elas acentuaram a habilidade de apuração dos profissionais. “Diria que as fake news me fizeram um jornalista muito mais desconfiado do que eu seria em um mundo analógico”, conta Pereira.
Contudo, Z. observa que o excesso de informações vindas do público pode dar margem a práticas nocivas dos próprios jornalistas. ”Calha que muitas vezes estes conteúdos atrapalham, porque muita gente fica só reencaminhando conteúdos do WhatsApp para a emissora. Eu vejo que muitas vezes este conteúdo acaba prejudicando o jornalismo, porque acaba tendo profissionais que não vão atrás das notícias, ficam só recebendo aquilo que chega. Aí esse conteúdo vira uma muleta”, opina.
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A proposta da checagem ao vivo
Questionamos os entrevistados sobre um tema levantado durante as eleições: a possiblidade de que a televisão faça uma checagem em tempo real durante transmissões ao vivo, como eram os debates eleitorais. Haveria, no fundo desta cobrança, uma discussão sobre a responsabilidade da televisão na hora de transmitir informações.
Daniel Pereira afirma que, em alguns lugares do mundo, já há alguns esboços deste tipo de iniciativa, mas que na dinâmica de um debate de televisão, isto ainda é inviável. “Trata-se de um produto que tem suas particularidades. O tempo é muito restrito e o formato acaba tendo seu grau de engessamento. As candidaturas também precisariam colaborar com essa iniciativa. De qualquer forma demandaria mais investimento e mais gente envolvida na operação”.
Ele ainda chama a atenção para a possibilidade de que a ideia da checagem se banalize, o que pode ser também um tiro no pé para as emissoras. “É preciso lembrar que checagem é algo complexo que demanda cruzamento de dados, uso de ferramentas e apuração. Fazer em tempo real e com prazo curtíssimo aumentaria a chance de equívocos”, comenta.
Z. segue o mesmo raciocínio: da possibilidade de que isso abra margem para descredibilizar o próprio papel da TV. “Pode haver uma espécie de descrença das próprias emissoras, como se a TV não tivesse a credibilidade suficiente naquilo que está transmitindo”.
A complexidade da checagem também é vista por C. como um empecilho para este tipo de demanda. “Em debates, esse trabalho acaba sendo mais complicado porque depende da checagem de dados, muitas vezes de órgãos específicos, que dependeria de um levantamento da pasta citada ou de busca em portais oficiais que nem sempre são muito fáceis de manusear. Imagino ser possível fazer essa checagem, mas algumas informações poderiam ter um delay para terem confirmação”.
Por fim, os três jornalistas concordam que as emissoras mantêm um papel central para a população no manejo do problema das notícias falsas. Pode-se dizer que elas se prestam a um papel de bússola que deve recuperar a rota correta da informação para um público muito amplo. “Já tivemos casos de matérias que surgiram por causa das fake news, matérias que seriam para tirar dúvidas e esclarecer, com fontes oficiais, determinados assuntos”, conclui C.
Esta é a terceira reportagem faz parte de uma série em quatro partes sobre os desafios da televisão frente as fake news. Continue acompanhando na Escotilha para ler todas as matérias. Enquanto isto, você pode ler a primeira e a segunda matéria.
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