É um fato inegável que RuPaul’s Drag Race configura muito mais que um programa: é um verdadeiro fenômeno cultural, com uma repercussão poucas vezes na história da televisão. Obviamente, não sugiro que este seja um dos programas mais memoráveis ou mesmo mais rentáveis da TV mundial, mas é realmente impressionante o quanto a atração criada pela famosíssima drag RuPaul Charles inaugurou uma espécie de “franquia de nicho”, um universo particular que encontra fãs cativos no mundo todo. Mesmo no Brasil (um dos países que parece mais gostar de RPDR), os braços derivados do show se estendem em programas como Drag me as a queen a Academia de Drags. Mesmo a turnê RuPaul’s Drag Race Werck the world, que traz um time de drags do show, incluiu o país na sua programação.
O sucesso é tanto que o reality show acabou gerando um segundo programa, chamado RuPaul’s Drag Race All Stars, que nada mais é que uma nova disputa, nos mesmos moldes do programa original, mas ocorrida entre as drags que mais se destacaram nas temporadas anteriores. É uma espécie de greatest hits: RuPaul e sua produção chamam as drags mais queridas (ou polêmicas, ou estranhas, ou injustiçadas, etc.) para voltar ao palco para um duelo de titãs da “dinastia drag”. O que se espera, portanto, são performances espetaculares, que passem longe do amadorismo eventual de algumas das participantes (cuja tosquice, inclusive, traz boa parte da diversão da franquia).
A mensagem trazida pela expressão ‘legado’ é clara: o programa ‘All Stars’ serve para terminar de consolidar a força dessa franquia na cultura pop, a trazer mais material para que os fãs continuem falando, cultuando e replicando todo o universo que estende a partir da figura de ‘Mama Ru’.
Deu tão certo que o programa All Stars está, atualmente, em seu terceiro ciclo. Mais curta que as temporadas normais do programa, All Stars funciona por algumas regras específicas, mais ao estilo “mata-mata”. Por exemplo: no RPDR original, o próprio RuPaul escolhe qual participante deixará o programa dentre as duas que se saíram pior naquela semana e que tiveram que executar um lip sync (uma dublagem profissional em cima de uma música escolhida, normalmente algum hit entre a comunidade LGBT); no RuPaul’s Drag Race All Stars, as duas melhores da semana participam do lip sync e as próprias drags têm que escolher quem vai embora dentre as piores, e não a apresentadora RuPaul. Na hora de anunciar essa batalha final, RuPaul usa, no RPDR, o bordão the time has come for you to lip sync for your life (em português: “chegou a hora de vocês dublarem por sua vida”); já no All Stars, ele anuncia que as drags duelarão por seu “legado” e não por sua “vida”.
A mensagem trazida pela expressão “legado” é clara: o programa RuPaul’s Drag Race All Stars serve para terminar de consolidar a força dessa franquia na cultura pop, a trazer mais material para que os fãs continuem falando, cultuando e replicando todo o universo que estende a partir da figura de “Mama Ru”. Esse apelido, aliás, também sintomático: é como se Ru fosse a mãe acolhedora de todos os filhos desse mundo LGBT (que inclui não apenas as participantes drags, mas todo o seu fandom) que, por natureza, é inclusivo, agregador, tem sempre espaço para quem quiser participar.

Além disso, a mudança nas regras do As provas mais famosas de ‘RPDR’, como o Snatch Game, são realizadas também no RuPaul’s Drag Race All Stars favorece o estabelecimento de uma dinâmica humana mais próxima, por exemplo, de um programa estilo Big Brother: como são as próprias participantes que excluem umas às outras, elas precisam apresentar seus argumentos sobre os critérios usados em sua decisão. Aparecem então dilemas diversos: deve-se eliminar a candidata mais forte? Deve-se optar por manter as alianças (Shangela, por exemplo, menciona sempre a lógica de Game of Thrones em suas conversas com a câmera). Na minha visão, embora traga alguma tensão ao programa, a regra acaba por distorcer os resultados do All Stars, pois a vencedora não será necessariamente a melhor de todas as drags.
Conforme esperado, RuPaul’s Drag Race All Stars deu bastante certo, embora não ofusque a graça nem chegue aos pés do programa original (em partes, creio, por ser mais previsível). As primeiras edições coroaram as drags Chad Michaels (uma impressionante imitadora da cantora Cher) e Alaska Thunderfuck (uma artista com forte vocação para a comédia), as quais terminaram a “corrida” adentrando no panteão das superdrags. A ideia de “dinastia”, da formação de uma casta entre as melhores, é ao tempo todo reiterada por RuPaul e pela edição do programa, valorizando as artistas que brilharam em suas temporadas, mas não venceram a competição.
Ainda restam pelo menos 2 episódios para o encerramento da temporada 3 (caso não haja mais episódios de repescagem, lavagem de roupa suja, etc.), mas já há bastante material a ser considerado sobre esta volta do All Stars. A começar pela seleção do elenco, com várias situações atípicas. Algumas drags (como Milk) foram lembradas por terem angariado mais fama após o término do programa do que durante o reality). É a mesma lógica da seleção de Morgan McMichaels, que gerou um fandom considerável após uma participação não muito marcante na temporada 2.
Mas o mais surpreendente talvez tenha sido a escalação de Bebe Zahara Benet, a vencedora da primeira temporada de RPDR, de 2009 (o que subverte uma regra do programa, já que o AllStars só contempla participantes que não venceram o show). Assim, é como se RuPaul’s Drag Race All Stars desse uma chance de uma maior visibilidade a uma participante precursora, pouco conhecida do grande público, pois acompanhou o programa quando ainda era bastante amador, digamos assim (numa brincadeira no programa de estreia, Bebe falou que em 2009 “nem existia internet ainda” – e ela não está longe da realidade, de fato).
O desenrolar do ciclo 3 tem trazido boas surpresas e momentos de humor. Ben De La Creme, que monta uma drag em estilo retrô, tem parecido imbatível: com performance quase sempre impecável, ganhou quase todos os desafios. Já Milk e Thorgy Thor se destacam negativamente: a primeira parece ter uma confiança desproporcional à qualidade de suas apresentações, e a última é daquelas do estilo “eu sou meu pior inimigo”. Talvez drags muito queridas, como Pearl e Valentina, pudessem ter sido lembradas para o elenco.
Ainda que não tenha o mesmo brilho da temporada “padrão” – que acabou de anunciar o elenco da temporada 10 – RuPaul’s Drag Race All Stars entrega uma boa diversão e contempla a legião de fãs que leva já tantas drags (são mais de cem desde a estreia do programa original) ao estrelato. É o fandom do programa, no fim das contas, o grande homenageado desta espécie de spin-off.