Encerrada na semana anterior, a nona temporada de RuPaul’s Drag Race contemplou, como tem ocorrido nos últimos anos, os fiéis do reality show capitaneado pel@ veteran@ RuPaul. Todos os ingredientes que cativaram os fãs continuaram lá: as drags com suas personalidades marcantes e peculiares, possibilitando a formação de um séquito disposto a defendê-las nas redes sociais; as competições meticulosamente pensadas para por à prova os diferentes talentos (como a dança, a atuação, a maquiagem, o estilo, o canto, o humor, etc.); a serialização e a remissão constante à história de todo RPDR (as referências às antigas queens e a recorrência das provas famosas, como o esperado Snatch Game, em que as drags imitam personalidades), agradando aos fãs que se sentem recompensados e pertencentes a um universo que, por essência, é inclusivo e acolhedor.
No entanto, mesmo com todos estes elementos, a temporada 9 deixou também um gosto de leve decepção, de mais do mesmo. Foi bom, como sempre é, mas também não foi isso tudo. E por que isto se dá? Conforme já observado nas outras temporadas, RuPaul’s Drag Race parece ter encontrado uma fórmula perfeita de reality show: tornou-se um programa que consegue usar a repetição enquanto uma vantagem.
O formato é razoavelmente o mesmo há alguns anos, e os fãs já esperam pelas mesmas etapas. Se você é mais um dos incontáveis fiéis a RuPaul’s Drag Race pelo mundo, provavelmente estava esperando por: o desafio em que as drags são provocadas a “montar” uma pessoa totalmente distante do seu universo (na nona temporada, a prova foi com membros da produção do programa); o momento da library, em que as queens participam de uma prova em que escracham uma das colegas; o show de stand up comedy; as piadinhas internas entre Ru e sua amiga Michelle Visage; os bordões que adoramos lembrar e repetir; os dramas pessoais das participantes, que eventualmente vem à tona, bem como as tretas entre elas.
Na nona temporada, estava tudo lá, é claro, mas a força da narrativa do programa também configurou uma certa fragilidade. Justamente por seu formato algo engessado, a necessidade de contemplar as expectativas dos fãs também fez com que a “cereja do bolo” fosse deixada de lado. Tal como um naked cake, os ingredientes estavam corretos, mas faltou aquela cobertura que cativasse o nosso coração. Editar um programa de televisão é, obviamente, fazer escolhas – e nem todas foram as mais acertadas.
Muitos diriam – com razão – que o sucesso ou o fracasso de um programa estilo reality show se fundamenta, sobretudo, pela escolha do elenco. Realities bons são aqueles em que a montagem do cast foi acertada. Se as personalidades não brilham, o programa não repercute. Na temporada 9, certamente, houve uma ausência de personagens marcantes – ou pelo menos tão marcantes quanto as que estrelaram temporadas anteriores.
Havia muito de talento e de esforço nas candidatas – e a própria vencedora, Sasha Velour, é a personificação do talento, concretizando um estilo drag arrojado e inteligente – mas faltou carisma, aquele “plus a mais” que nos seduz e não conseguimos definir bem em palavras, como apontou com perspicácia a análise de Henrique Haddefinir no portal Série Maníacos. Diferente das temporadas anteriores, não tivemos favoritas absolutas, como a invencível Bianca Del Rio ou Bob The Drag Queen na temporada 8. Foi tudo muito equilibrado – e isso não necessariamente é uma qualidade quando se trata de um programa de televisão.
Havia muito de talento e de esforço nas candidatas da temporada 9, mas faltou carisma, aquele ‘plus a mais’ que nos seduz e não conseguimos definir bem em palavras.
Por outro lado, algumas boas chances de que algumas personalidades se destacassem foram perdidas. O conflito entre Trinity Taylor e Eureka, por exemplo, nem chegou a se concretizar, pois Eureka acabou (infelizmente) sendo eliminada do programa por motivos de saúde. Outra personalidade forte, a de Nina Bo’nina Brown, foi meio que devorada por si mesma: ao longo dos episódios, a interessante Nina (que fazia um drag algo “desconstruído”, montado sobre praticamente nada) entrou em um triste processo de ensimesmamento que fez com que ela mal conseguisse se mostrar. A depressão de Nina, por outro lado, talvez pudesse ser melhor aproveitada para fins dramáticos, mas isso não aconteceu.
Mas nada se compara com o que aconteceu em um dos momentos mais reverberantes desta nona temporada, ocorrido bem no meio do programa: o episódio envolvendo a drag Valentina. Por si mesma, Valentina já entrou no reality configurando um verdadeiro fenômeno: talvez nenhuma outra queen tenha angariado uma legião tão fiel de fãs, propensa a defendê-la com unhas e dentes nas redes sociais. No episódio 09, Valentina passa pelo lip sync (o “paredão” do RPDR) com Nina Bo’nina Brown. Ambas deveria dublar a música “Greedy”, de Ariana Grande. Ocorre então um momento que, sem dúvida, foi o clímax desta temporada: Valentina resolve dublar a música com uma máscara que tapa os seus lábios.
Repreendida por RuPaul, Valentina (a contragosto) acaba tirando a máscara, o que revela aquilo que queria esconder: que não havia memorizado a letra da canção (um erro primário para alguém que se dispõe a participar de uma competição de alto nível). Como consequência, Valentina – que, em alguma medida, despontava como protagonista da edição, dentro e fora do reality – é eliminada, numa decisão justa, mas controversa. Afinal, reality shows nem sempre são sobre justiça, mas sobre entretenimento, e nenhuma decisão é simples. Uma vez que em RuPaul’s Drag Race as decisões de decisão são sempre tomadas apenas por RuPaul, sua opção pela justiça foi bastante questionada: valeu a pena tirar uma de suas personagens de maior destaque por um lapso (grande, mas pontual) e perder uma grande participante?
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Tudo isso culminou numa final algo decepcionante, com uma sensação de ter sido muito breve. A “novidade” da edição foi uma espécie de batalha de lipsyncs entre as quatro finalistas (uma forma, acredita-se, de valorizar a performance drag, algo que vinha sendo desconsiderado pelas participantes – Charlie Hides, por exemplo, se recusou explicitamente a se mover no seu lipsync e foi eliminada).
O resultado, no entanto, foi que muitos dos elementos esperados à final – como a participação mais efetiva de todo o cast, as piadas internas e a presença da queens de temporadas anteriores – tiveram que ser limados. Todos estes elementos, vale lembrar, operam como a “cola” que faz os fãs sentirem-se abraçados por este maravilhoso universo construído por Mama Ru. Vale lembrar que este foi prioritariamente um problema de edição, já que haviam momentos divertidíssimos que poderiam ser veiculados – como a brincadeira envolvendo Mimi Imfurst e India Ferrah, que remete a um dos momentos mais marcantes de todo o RPDR, ocorrido na temporada 3.
Em suma, uma boa temporada – como não poderia deixar de ser -, mas que deixa a dúvida sobre como, nas próximas edições, RuPaul e seu pit crew farão para manter o entretenimento do mesmo nível das competições envolvendo as grandes estrelas de RuPaul’s Drag Race. A fórmula continuará inalterada, eficiente mas algo repetitiva? Conseguirá o programa encontrar novas personalidades reluzentes, ou será que todas as grandes queens já estiveram no reality? Só o futuro dirá.
* Agradeço ao jornalista Renan Guerra pelas dicas dos vídeos e pelas discussões que ajudaram na construção deste texto.